Ao assistir recentemente o filme “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes, ambientado no sertão brasileiro de 1942, constatei que o diretor nem precisou criar cenário para fazer sua obra. A miséria e a falta de perspectiva do sertão nordestino continuam as mesmas seis décadas depois.
A mesma sensação me tomou quando vi “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles, sobre a viagem do jovem Che Guevara pela América Latina dos anos 50. Lembrei-me de itinerário semelhante que percorri em meados dos anos 80, quando percebi a mesma realidade vivenciada pelo Che. E tenho convicção de que quem se aventurar pelo mesmo percurso hoje em dia não encontrará nada muito diferente.
É impossível imaginar uma cidade americana ou européia igual ao que era 60 anos atrás. No caso europeu, pode até se manter como era há séculos, mas por preservação histórica e não por atraso. Esta estagnação latino-americana e o esquecimento de grandes parcelas de sua população são dívidas a serem resgatadas. Estes deveriam ser os compromissos de seus governantes. Este foi o ideal a que Che se dedicou.
Há uma esperança de que o idealismo de Che esteja alimentando, de alguma forma, a virada à esquerda que se processa agora na América Latina. Mudança, que como diagnosticou o professor da UFRJ, José Luís Fiori, está sendo tentada por homens que não pertencem às elites tradicionais, mas têm objetivos éticos, sociais e políticos muito claros, populares, nacionais e igualitários.
Pode-se afirmar que a tendência à esquerda na América Latina iniciou-se com a eleição de Lula, um imigrante nordestino, torneiro mecânico e líder político que conheceu todos os sofrimentos causados pela miséria e pela desigualdade. A esperança depositada em seu governo acabou se frustrando em grande parte e a esquerda brasileira deve penar para superar este trauma. Mal ou bem, porém, seu governo deu alguns sinais de vida e não se pode descartar os efeitos de distribuição de renda do programa Bolsa Família. Lula não é carta fora do baralho para as próximas eleições, embora corra o risco de ficar fora da festa na sua melhor hora, como observou Luís Fernando Veríssimo em sua coluna semanal.
A liderança mais expressiva dentre estes homens fora das elites acabou sendo Hugo Chávez, que busca transformar a Venezuela, colocando suas riquezas a favor dos menos favorecidos e da integração latino-americana. Chávez já se tornou parâmetro para novos líderes, como o recém eleito presidente da Bolívia, Evo Morales, outro homem do povo, em sintonia com os projetos nacionais e sociais.
Longe de ser de esquerda, quem acabou surpreendendo pela coragem de enfrentar a ordem econômica mundial e até o presidente dos Estados Unidos foi o presidente argentino Nestor Kirchner. Sua política e suas atitudes ganharão mais lastro com a possível eleição da socialista Michelle Bachelet, no Chile, e com uma maior expressão do presidente uruguaio Tabaré Vázquez.
MAIR PENA NETO
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