Enquanto isso, juízes que deveriam se comportar como magistrados se põem a fazer comentários sobre a natureza da crise política, chegando a dizer que nunca houve nada pior na história do país. Caramba! Ainda estamos falando de uma disputa eleitoral. E o golpe de abril de 1964 o que foi? Uma festa democrática?
A internet em chamas
A internet está em chamas com o caso do dossiê/Serra. Internautas à beira de um ataque de nervos surgem em blogs, chats e sites. Mensagens antecipam a possível capa de uma revista semanal com 'O chefe da quadrilha' por título. A eleição mais chocha que eu já havia presenciado agora mudou!
Flávio Aguiar
Desde que o dossiê/Serra provocou o caso que hoje ocupa corações e mentes na política brasileira, a internet está em chamas. Mensagens, algumas frenéticas, cruzam as avenidas da rede e chegam aos becos mais profundos. Um clima de internautas à beira de um ataque de nervos tomou conta dos blogs, chats, páginas, sites e tudo o mais.
Comparações históricas – algumas histéricas – entraram em cena. De Gregório (o fiel escudeiro de Getúlio Vargas) a Nixon (o presidente norte-americano que perdeu o mandato depois de reeleito, por causa do caso Watergate), as lembranças pairam sobre a cabeça do presidente Lula, ora solidárias, ora ameaçadoras.
Mensagens antecipam a possível capa de prestigiosa revista semanal – hoje já sem tanto prestígio assim por causa dessas suas atitudes – em que se apresentaria uma foto-montagem com o presidente algemado e algo como “O chefe da quadrilha” por título. Outras falam que é necessário começar a preparar, como fez em 1961 o então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, uma Rede da Legalidade, para garantir a posse e o governo de Lula, caso ele seja reeleito.
Outras mensagens e outros comentários, na internet e fora dela, vaticinam: o segundo governo Lula, se houver, vai ser um inferno astral contínuo. Lula não vai governar, vai se arrastar penosamente. Há quem pergunte como Lula vai governar com a classe média e os mais escolarizados de costas para ele (embora as pesquisas indiquem mais um empate técnico nestes setores do que outra coisa). E mais: como ele poderá (ou ousará?) governar contra os sacrossantos “formadores de opinião”? (É claro que nesse caso só se considera “formador de opinião” quem é pró-Alckmin. Os outros, os pró-Lula, são continuamente enxovalhados na imprensa ou citados por quem assim pensa, como escritores, intelectuais, professores que perderam o senso, a espinha e a ética).
Até então a eleição deste ano fora a mais chocha que eu já presenciei. Um autêntico espírito de chuchu sem gosto nenhum parecia dar-lhe o tom. Mas subitamente o chuchu se apimentou! Até as ruas das cidades estão mudando. Os cavaletes com fotos de candidatos estão se multiplicando. No bairro onde moro, Vila Indiana, ao lado da Universidade de São Paulo e do Instituto Butantan, as bandeiras e faixas espontâneas começam a aparecer na fachada das casas e apartamentos. Muitas vermelhas e brancas, e – vejam só – estreladas!
O frenesi internáutico e a febrícula que só agora começa a subir nas ruas mostram que o espaço de disputa das eleições está mudando. Fala-se em impugnar a candidatura do presidente. Mas até agora, para depor um presidente (pois é disto que se trata), era necessário ocupar as ruas, com povo ou com tanques. Quem vai fazer isso? As oposições? Ora, direis, as oposições! Elas não têm mais tanques, nem manifestam saudades ou desejo de povo nas ruas, manifestam, isto sim, saudades do Carlos Lacerda, e têm privilegiado a futrica jornaleira.
Mas o que acontecerá se elas partirem mesmo para a ignorância, agora ou depois? A verdade é que não se sabe. O frenesi internético se traduzirá nas ruas, em defesa do eventual mandato de um presidente cassado? É uma boa pergunta, e quem disser que sabe cabalmente a resposta está mentindo ou devaneando.
Desde o golpe de estado que levou Bush Filho ao seu primeiro mandato, dado através de uma contagem de votos nas urnas e consumado numa votação apertada no tribunal (4 x 3), o estilo golpista vem mudando de opções. O melhor exemplo é o da eleição no México, que seguiu o modelo norte-americano: mela-se a contagem dos votos nas urnas, os tribunais garantem a legalidade da fraude.
Mas será que isso é tão novo assim? Já que se falou em Getúlio, lembremos que esse era o estilo do golpe que as então direitas almejavam. Deixava-se o presidente isolado, depois os generais davam-lhe um ultimato, e o presidente sairia pela porta dos fundos da história, já que ousava agradar o povo, e não as elites ou os temerosos das classes médias, entre estes os militares.
Mas os golpistas não perceberam que a paisagem tinha mudado. A leitura da Carta Testamento no rádio trouxe a multidão para a rua, não para festejar o golpe, mas para aplastrá-lo no nascedouro. Mas será que tal cenário é possível hoje?
Na Venezuela, de certo modo, foi: pelo celular e pela internet, os militares legalistas se comunicaram entre si, localizaram o paradeiro do presidente seqüestrado e regataram-no, e pelas mesmas vias abertas da América Latina o povo se autoconvocou para a frente do Palácio Miraflores, isolando os golpistas e recebendo apoteoticamente a volta do mandatário de sua preferência. Será isso possível no Brasil? Não sabemos.
Enquanto isso, juízes que deveriam se comportar como magistrados se põem a fazer comentários sobre a natureza da crise política, chegando a dizer que nunca houve nada pior na história do país. Caramba! Ainda estamos falando de uma disputa eleitoral. E o golpe de abril de 1964 o que foi? Uma festa democrática?
Atitudes curiosas chegam aos palcos. O programa de Lula, lançado na semana passada com míseras 32 páginas, foi acusado de genérico, superficial e raquítico. Em compensação, o de Alckmin, lançado ontem, há onze dias da eleição, tem 216 páginas! Uma tese de doutorado! Deve ter notas de rodapé, referências bibliográficas, prefácio, pós-fácio, introdução, apêndices e anexos. Como há quem diga que eles são iguais, ou deveriam ser, esses deveriam ser condenados a ler e fichar o de Alckmin até as vésperas das eleições para provar a sua tese. E depois, 216 + 32 = 248. 124 páginas para cada um e não se fala mais nisso. Já o programa de Cristovam Buarque será transformado numa apostila de leitura obrigatória para acesso à futura Bolsa-Escola. E o de Heloísa Helena está ainda no prelo (ou no prego?), vetado pelo braço esquerdo da coligação por ser burguês demais!
Certa vez um amigo meu, membro de uma coligação social-democrata que chegou a se eleger para a prefeitura de Montreal, no Canadá, me perguntou qual era a diferença entre uma reunião de esquerda lá e no Brasil. Expliquei, e ele não entendeu, que no Brasil, numa reunião dessas alguém pode levantar e propor a extinção imediata da propriedade privada, a estatização de todo o sistema financeiro, a substituição das Forças Armadas por Milícias Populares, o rompimento com o FMI, com o BID, o Bird, e das relações diplomáticas com os Estados Unidos, que sempre haverá alguém que se erguerá dizendo que isso não passa de um solerte e suspicaz plano burguês para desviar o proletariado de seus verdadeiros interesses.
Por seu lado, aproveitando a maré circense que toma conta do país, com o du Soleil, o Chinês, o Roda Brasil e outros, uma trupe de aqualoucos lotados no PT resolveu se candidatar a um número palhaçal num deles, cheio de qüiproquós e trapalhadas. Enquanto isso, a imprensa conservadora usa seus cada vez mais curtos cobertores para tapar as eventuais vergonhas que poderiam vir a público numa investigação sobre as origens do esquema apelidado de “sanguessuga” no ou durante o governo passado. Investigar? Sim! Rigor? Sim! Meras suspeitas transformadas em condenações? Sim! Mas só daqui pra lá, pra esquerda! Daqui pra cá, pra direita, fala-se na suposta possibilidade de uma quem sabe talvez existência de leves suspeitas que necessitam de investigações totais e comprobatórias que devem ser suspensas até segunda ou terceira ordem.
Mas assim é a vida. O povo vai votar, e vai escolher. Espera-se, construindo nesses processos lentos, inseguros e aos solavancos da vida brasileira, a sua soberania. Espera-se. Nem tudo está perdido. Só nós.
Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.
A internet em chamas
A internet está em chamas com o caso do dossiê/Serra. Internautas à beira de um ataque de nervos surgem em blogs, chats e sites. Mensagens antecipam a possível capa de uma revista semanal com 'O chefe da quadrilha' por título. A eleição mais chocha que eu já havia presenciado agora mudou!
Flávio Aguiar
Desde que o dossiê/Serra provocou o caso que hoje ocupa corações e mentes na política brasileira, a internet está em chamas. Mensagens, algumas frenéticas, cruzam as avenidas da rede e chegam aos becos mais profundos. Um clima de internautas à beira de um ataque de nervos tomou conta dos blogs, chats, páginas, sites e tudo o mais.
Comparações históricas – algumas histéricas – entraram em cena. De Gregório (o fiel escudeiro de Getúlio Vargas) a Nixon (o presidente norte-americano que perdeu o mandato depois de reeleito, por causa do caso Watergate), as lembranças pairam sobre a cabeça do presidente Lula, ora solidárias, ora ameaçadoras.
Mensagens antecipam a possível capa de prestigiosa revista semanal – hoje já sem tanto prestígio assim por causa dessas suas atitudes – em que se apresentaria uma foto-montagem com o presidente algemado e algo como “O chefe da quadrilha” por título. Outras falam que é necessário começar a preparar, como fez em 1961 o então governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola, uma Rede da Legalidade, para garantir a posse e o governo de Lula, caso ele seja reeleito.
Outras mensagens e outros comentários, na internet e fora dela, vaticinam: o segundo governo Lula, se houver, vai ser um inferno astral contínuo. Lula não vai governar, vai se arrastar penosamente. Há quem pergunte como Lula vai governar com a classe média e os mais escolarizados de costas para ele (embora as pesquisas indiquem mais um empate técnico nestes setores do que outra coisa). E mais: como ele poderá (ou ousará?) governar contra os sacrossantos “formadores de opinião”? (É claro que nesse caso só se considera “formador de opinião” quem é pró-Alckmin. Os outros, os pró-Lula, são continuamente enxovalhados na imprensa ou citados por quem assim pensa, como escritores, intelectuais, professores que perderam o senso, a espinha e a ética).
Até então a eleição deste ano fora a mais chocha que eu já presenciei. Um autêntico espírito de chuchu sem gosto nenhum parecia dar-lhe o tom. Mas subitamente o chuchu se apimentou! Até as ruas das cidades estão mudando. Os cavaletes com fotos de candidatos estão se multiplicando. No bairro onde moro, Vila Indiana, ao lado da Universidade de São Paulo e do Instituto Butantan, as bandeiras e faixas espontâneas começam a aparecer na fachada das casas e apartamentos. Muitas vermelhas e brancas, e – vejam só – estreladas!
O frenesi internáutico e a febrícula que só agora começa a subir nas ruas mostram que o espaço de disputa das eleições está mudando. Fala-se em impugnar a candidatura do presidente. Mas até agora, para depor um presidente (pois é disto que se trata), era necessário ocupar as ruas, com povo ou com tanques. Quem vai fazer isso? As oposições? Ora, direis, as oposições! Elas não têm mais tanques, nem manifestam saudades ou desejo de povo nas ruas, manifestam, isto sim, saudades do Carlos Lacerda, e têm privilegiado a futrica jornaleira.
Mas o que acontecerá se elas partirem mesmo para a ignorância, agora ou depois? A verdade é que não se sabe. O frenesi internético se traduzirá nas ruas, em defesa do eventual mandato de um presidente cassado? É uma boa pergunta, e quem disser que sabe cabalmente a resposta está mentindo ou devaneando.
Desde o golpe de estado que levou Bush Filho ao seu primeiro mandato, dado através de uma contagem de votos nas urnas e consumado numa votação apertada no tribunal (4 x 3), o estilo golpista vem mudando de opções. O melhor exemplo é o da eleição no México, que seguiu o modelo norte-americano: mela-se a contagem dos votos nas urnas, os tribunais garantem a legalidade da fraude.
Mas será que isso é tão novo assim? Já que se falou em Getúlio, lembremos que esse era o estilo do golpe que as então direitas almejavam. Deixava-se o presidente isolado, depois os generais davam-lhe um ultimato, e o presidente sairia pela porta dos fundos da história, já que ousava agradar o povo, e não as elites ou os temerosos das classes médias, entre estes os militares.
Mas os golpistas não perceberam que a paisagem tinha mudado. A leitura da Carta Testamento no rádio trouxe a multidão para a rua, não para festejar o golpe, mas para aplastrá-lo no nascedouro. Mas será que tal cenário é possível hoje?
Na Venezuela, de certo modo, foi: pelo celular e pela internet, os militares legalistas se comunicaram entre si, localizaram o paradeiro do presidente seqüestrado e regataram-no, e pelas mesmas vias abertas da América Latina o povo se autoconvocou para a frente do Palácio Miraflores, isolando os golpistas e recebendo apoteoticamente a volta do mandatário de sua preferência. Será isso possível no Brasil? Não sabemos.
Enquanto isso, juízes que deveriam se comportar como magistrados se põem a fazer comentários sobre a natureza da crise política, chegando a dizer que nunca houve nada pior na história do país. Caramba! Ainda estamos falando de uma disputa eleitoral. E o golpe de abril de 1964 o que foi? Uma festa democrática?
Atitudes curiosas chegam aos palcos. O programa de Lula, lançado na semana passada com míseras 32 páginas, foi acusado de genérico, superficial e raquítico. Em compensação, o de Alckmin, lançado ontem, há onze dias da eleição, tem 216 páginas! Uma tese de doutorado! Deve ter notas de rodapé, referências bibliográficas, prefácio, pós-fácio, introdução, apêndices e anexos. Como há quem diga que eles são iguais, ou deveriam ser, esses deveriam ser condenados a ler e fichar o de Alckmin até as vésperas das eleições para provar a sua tese. E depois, 216 + 32 = 248. 124 páginas para cada um e não se fala mais nisso. Já o programa de Cristovam Buarque será transformado numa apostila de leitura obrigatória para acesso à futura Bolsa-Escola. E o de Heloísa Helena está ainda no prelo (ou no prego?), vetado pelo braço esquerdo da coligação por ser burguês demais!
Certa vez um amigo meu, membro de uma coligação social-democrata que chegou a se eleger para a prefeitura de Montreal, no Canadá, me perguntou qual era a diferença entre uma reunião de esquerda lá e no Brasil. Expliquei, e ele não entendeu, que no Brasil, numa reunião dessas alguém pode levantar e propor a extinção imediata da propriedade privada, a estatização de todo o sistema financeiro, a substituição das Forças Armadas por Milícias Populares, o rompimento com o FMI, com o BID, o Bird, e das relações diplomáticas com os Estados Unidos, que sempre haverá alguém que se erguerá dizendo que isso não passa de um solerte e suspicaz plano burguês para desviar o proletariado de seus verdadeiros interesses.
Por seu lado, aproveitando a maré circense que toma conta do país, com o du Soleil, o Chinês, o Roda Brasil e outros, uma trupe de aqualoucos lotados no PT resolveu se candidatar a um número palhaçal num deles, cheio de qüiproquós e trapalhadas. Enquanto isso, a imprensa conservadora usa seus cada vez mais curtos cobertores para tapar as eventuais vergonhas que poderiam vir a público numa investigação sobre as origens do esquema apelidado de “sanguessuga” no ou durante o governo passado. Investigar? Sim! Rigor? Sim! Meras suspeitas transformadas em condenações? Sim! Mas só daqui pra lá, pra esquerda! Daqui pra cá, pra direita, fala-se na suposta possibilidade de uma quem sabe talvez existência de leves suspeitas que necessitam de investigações totais e comprobatórias que devem ser suspensas até segunda ou terceira ordem.
Mas assim é a vida. O povo vai votar, e vai escolher. Espera-se, construindo nesses processos lentos, inseguros e aos solavancos da vida brasileira, a sua soberania. Espera-se. Nem tudo está perdido. Só nós.
Flávio Aguiar é professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP) e editor da TV Carta Maior.
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