SERÁ O PROFESSOR?
por Bruno Moreschi
por Bruno Moreschi
Vim a Goiás para morrer anonimamente e, até agora, não consegui. Fracassei. Vocês me forçaram...
Convicto do que fazia, ele deitou no gramado com as pernas esticadas e os braços abertos, formando uma cruz, para seu corpo secar até a desejada morte. Os moradores da pequena cidade de Bela Vista de Goiás, a 45 quilômetros de Goiânia, assustaram-se com a cena e chamaram a polícia. Exerço meu direito de morrer. Estou tranqüilo, pronto para desencarnar, explicou o homem magro, com educação. Ao seu lado, uma mala com 25 reais, poucas roupas dobradas e um bilhete com letras tremidas: A quem interessar possa. Meu nome: Solitário. Não tenho familiares nem parentes nesta região do País. Suas características físicas e intelectuais levam à suspeita de que ele seja o desaparecido e culto morador de rua de Florianópolis, conhecido como Professor, tema de uma Brasiliana (Professor, cadê você?), publicada há quatro semanas, na edição 411 de Carta Capital.
O primeiro médico chamado para tratar do Solitário lançou a polêmica: Ele tem o direito de morrer e, por isso, não vou medicá-lo. Foi necessário a procuradora da cidade, Sandra Garbelini, entrar com um pedido judicial para a juíza Vanessa Montefusco, que o aceitou prontamente. Os argumentos legais foram o direito à vida e a dúvida quanto à sua sanidade. É até difícil nomear o que acontece. Não é eutanásia, tampouco greve de fome típica, já que não há motivo político, explica a procuradora.
Hoje, o Solitário está em Goiânia, internado confortavelmente no quinto andar do Hospital de Emergência. Alguns médicos afirmam que perdeu cerca de 30 quilos, outros quantificam que ele está 51 quilos mais magro. Independentemente da pesagem correta, a verdade é que, de tão seco, seu corpo já não possui mais cintura, bíceps, peitoral Vê-se apenas um filete de pele e osso suportando uma cabeça cadavérica. Quando raramente fala, custa para separar os lábios e deixa escapar um fio fino de saliva seca junto à voz. Responde objetivamente às perguntas e ponto final. Só fala um pouco mais quando uma das enfermeiras chega com um livrinho de adivinhações, charadas que sempre acerta. Com português impecável, não perdoa um deslize gramatical ou fonético. Púdico, não. É pudico, por favor.
O Solitário tem tevê no quarto e uma bandeja cheia de comida ao seu lado, exclusivas mordomias no hospital conhecido por ter a capacidade para 400 pessoas e atender 900, em dias normais. As assistentes sociais especulam a respeito do assunto discutido na cidade inteira: o Solitário é ou não o Professor de Florianópolis? A suspeita inicial veio de Luiz Felipe Fernandes, produtor da TV Anhanguera, retransmissora da Globo, que leu a reportagem de CartaCapital e comentou com amigos sobre a possibilidade.
As semelhanças são muitas. Entre elas, uma pequena cicatriz na orelha esquerda. Além disso, os dois visitaram os mesmos países e falam os mesmos idiomas, ao todo sete. O anônimo afirma que gosta de Florianópolis, mas que não ficou muito tempo na cidade. O tempo, porém, é relativo para ele, que diz conhecer pouco São Paulo para, em seguida, revelar que morou dez anos na capital paulista. Quando perguntaram se é Carlos Weizel, o nome do Professor, ele sorri e responde: Carlos, sim... mas agora é Carlos Schatamachi. Até mesmo a Polícia Federal entrou na história e, depois de uma pesquisa, concluiu que a identificação não existe. Na primeira vez que perguntaram se era o morador de Florianópolis, ele sorriu e fingiu dormir.
O taxista Araújo Lima, do aeroporto de Goiânia, compara as fotos do homem de Florianópolis e do Solitário e conclui: Claro que é. É só ver os olhos. Pensa diferente a assistente social Maria Auxiliadora: Ah, acho que não é. É só uma pessoa comum querendo aparecer. O médico Luciano Sardinha, diretor-geral do hospital, conjectura: Pode ser, mas, talvez, por não querer ser reconhecido, ele nega.
Entretanto, se um dia o Solitário resolver contar a verdade, a primeira pessoa a ouvi-la será Alba Genovesi, a baixinha loira, chefe do Serviço Social do hospital. Fã do seriado norte-americano C.S.I., sua profissão exige que seja uma boa detetive. Os funcionários da Polícia Civil, local onde ela diz que trabalhou em uma outra vida, brincam que um dia irão homenageá-la. Alba gosta de contar que conheceu o marido, o diretor da Associação de Xadrez de Goiânia, pela internet e que, custe o que custar, vai descobrir a verdade sobre o Solitário. Aproxima-se do misterioso, oferece rapadura em um copinho branco descartável, encosta sua mão pequena nos seus dedos-ossos e comenta que a relação entre os dois já se transformou numa de mãe e filho. Quando escuta isso, Solitário, como se ressuscitasse, esbugalha os olhos, vira o rosto para ela e sorri em silêncio.
Mas não é só Alba que busca a verdade sobre o Solitário. O caso virou notícia na região e o protagonista, celebridade instantânea. Carla Borges, repórter do jornal O Popular, foi a primeira a escrever uma reportagem. Depois da publicação da matéria, com direito a chamada na capa, o hospital não é mais freqüentado apenas pelos doentes deitados nas macas dos corredores. Jornalistas, principalmente os de televisão, enfiam seus microfones na boca de Alba, do médico Sardinha, do próprio autor da reportagem de CartaCapital, tudo como desculpa para, logo em seguida, invadir sem dó o quarto do ser raquítico que ainda se recupera de uma coletiva de imprensa ocorrida no dia anterior com Globo, SBT, Band e Record, essa última em uma tentativa frustrada de transmissão ao vivo no telejornal matutino nacional.
Quando os microfones miram na boca do Solitário, ele come lentamente um pedaço de pão e toma um copo de água. Finalmente, solicita com sua voz quase inaudível: Os senhores... podem esperar eu comer? Após alguns minutos, ele chama a atenção de um dos repórteres que havia feito uma pergunta sobre a sua preferência literária por Sócrates.
Se você tivesse lido alguma coisa dele, não me perguntaria isso.
Quem é o senhor?
Não é necessário. Os senhores poderiam dominar um pouco a curiosidade.
Mas é que somos jornalistas e somos curiosos.
Há 51 dias... Minha missão terminou... Vim a Goiás pra morrer mais anonimamente e, até agora, não consegui.
E por que o senhor tentou se matar? Desilusão?
Na minha idade, não há desilusão. Há decisão.
Qual seu nome completo?
Então, o repórter dispara a típica pergunta do jornalismo televisivo:
O que o senhor gostaria de falar para as pessoas que estão lhe assistindo?
Fracassei. Vocês me forçaram.
Mas é que as pessoas não querem que o senhor morra.
Que gentileza...
O senhor acha que não existe beleza na vida?
A beleza é... ser racional. O ser humano precisa aprender a ser gente, porque, até agora, ele só tem uma falsa racionalidade. Se A é B, E é C, então devemos concluir que A é igual a C.
Silêncio. Ninguém entende o cálculo. Ele sorri discretamente. Enquanto todos se preocupam com a sua identidade, ele busca algo que só alguém prestes a desencarnar enxerga. Na quinta-feira 12, o estado de saúde do Solitário piorou. Em uma crise de choro, Alba comentou com ele que seu medo é ter de enterrá-lo como indigente. Ele questionou com os olhos fechados: Que diferença faz?
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