FHC diz que, em seu governo, procurador era 'totalmente independente' do Executivo
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que "nunca interferiu" para que a Procuradoria Geral da República arquivasse processos contra membros de seu governo e que – durante seu período na Presidência – o procurador era "totalmente independente" do poder Executivo.
A afirmação foi feita durante entrevista ao programa de TV Hard Talk, que vai ao ar no canal de notícias internacional BBC World nesta quinta-feira.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e líderes do PT têm argumentado com freqüência que acusações de corrupção envolvendo membros do governo e do partido seriam resultado de uma postura mais independente do procurador-geral e da Polícia Federal.
Durante a campanha eleitoral de 2006, Lula disse que, no seu governo, "procurador-geral da República indicia. Em outros governos, ele engavetava".
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Na entrevista ao Hard Talk, Fernando Henrique Cardoso também afirmou que a falta de confiança nos políticos impede as pessoas no Brasil de perceber que o país está progredindo.
Assista à entrevista
Leia abaixo a primeira parte da tradução da entrevista, feita no dia 25 de setembro. O ex-presidente foi questionado e respondeu em inglês.
BBC - Em uma entrevista recente o senhor mencionou uma falta de entusiasmo geral que existiria atualmente no Brasil. O senhor disse que existe um sentimento de desânimo em seu país. Por que o sr. acha que o Brasil está desanimado?
Fernando Henrique Cardoso - Eu diria que basicamente isso se deve à falta de confiança na vida política que existe hoje em dia no Brasil. Não que isso seja centrado em alguém especificamente, em algum personagem, ou no presidente. Não é isso. Mas no Congresso, na maneira em que os políticos tratam os problemas nacionais. E também por causa da corrupção que existe em meio à liderança política.
BBC - Mas vamos analisar o cenário mais amplo. Apesar da economia brasileira estar crescendo menos do que a da China e da Índia - o país ainda apresenta uma taxa de crescimento entre 3% e 4% - a redução da pobreza tem sido feita numa escala impressionante. Eu não consigo entender por que, apesar desse quadro econômico mais amplo, o país passa por uma crise de identidade como o sr. falou.
FHC - Eu não diria que existe uma crise de identidade....acho que é mais um sentimento de malaise...se me permite usar uma expressão em francês....como se nós não estivéssemos nos sentindo bem. Quer dizer, me refiro à classe média, àquelas pessoas que lêem jornais ou que tentam seguir o que acontece no Congresso. Porque a percepção do cidadão comum é de que, como você disse antes, a economia vai bem. É verdade que não vai tão bem como em outros países ou mesmo como foi bem em outros tempos no Brasil, mas de todo modo um crescimento de 4% ao ano não é ruim. E também é verdade que está havendo uma redução do nível de pobreza. Portanto, nesse sentido o cidadão comum acha que seu padrão de vida está melhorando.
BBC - O motivo pelo qual usei o termo crise de identidade para caracterizar o seu argumento foi porque o senhor disse que existe uma falta de coesão na vida do Brasil como nação, que não existem no país idéias ou projetos unificados. Famílias, partidos politicos, religião, educação, estariam todos se fragmentando.
FHC - Bom, é um pouco exagerado dizer que existe uma fragmentação total. Na verdade, em outros momentos da história do Brasil existiu um sentimento de que o país estava progredindo. Agora, estamos progredindo de fato, mas não existe essa sensação, essa percepção.
BBC - Exato, no momento, o país progride como nunca foi visto antes e ainda assim o sr. não parece satisfeito, parece ter menos certeza sobre a situação do Brasil.
FHC - Mas esse é exatamente o ponto mais importante. Nós temos repetido sempre, durante as últimas décadas, desde a redemocratização, que o país precisa de educação, saúde... Temos o problema da reforma agrária, o problema da pobreza, da miséria, e isso é dito e repetido todos os dias, de tal modo que os brasileiros se convenceram de que existe uma situação desesperadora no país, o que nao é verdade. Estamos progredindo. O que falta é apenas um novo consenso. Isso depende basicamente da liderança. Eu diria que não quero criticar o meu presidente, pelo contrário, pois acho que Lula tem uma importância simbólica para o Brasil. Ele veio da classe trabalhadora e agora é presidente. Isso poderia ser um sinal importante. Portanto, por que não? Então por isso é que digo que tudo se deve a essa falta de confiança na classe política, como se rotula, incorretamente, no Brasil, aqueles que têm controle do sistema político. Estes é que não contam com a confiança da população.
BBC - Vamos falar sobre o presidente Lula um pouco depois... Mas o que eu sinto ao conversar com o sr. é um verdadeiro sentimento de frustração pelo fato de o senhor ter sido presidente por dois mandatos e não ter sido capaz de mudar a cultura política do país.
FHC - Você está certo quando se refere à cultura política.
BBC - E por quê?
FHC - Eu creio que consegui mudar o país.
BBC - Não tenho tanta certeza assim. O sr. realmente acredita que conseguiu?
FHC - Em relação à economia, sem dúvida que sim.
BBC - É verdade, mas indo além da economia? Eu percebo um sentimento de frustração... Como o sr. mesmo disse, "meu governo tornou a educação universal, mas para quê? Agora o ensino nas escolas é um desastre."
FHC - Não, não...
BBC - Isso foi o que sr. disse.
FHC - Foi o que eu disse, mas porque nosso problema era dar à população acesso às escolas. Mas agora o problema é qualidade. E isto é diferente, você percebe? Temos que melhorar a qualidade do ensino, o que talvez seja mais difícil do que simplesmente garantir o acesso à educação. Não sou pessimista em relação ao Brasil, talvez esta entrevista tenha um tom pessimista, mas não é assim que me sinto.
BBC - O sr. era um homem visto como um tecnocrata, talvez até visto por alguns como um neoliberal em termos econômicos. Com certeza o sr. acelerou o ritmo das privatizações, mas apesar de todas as suas reformas econômicas estruturais o sr. não conseguiu solucionar o problema dos dois Brasis. Isto é, de um lado a classe média e a classe alta, esta muito bem sucedida, representada por uma minoria muito pequena e do outro lado o enorme número, de milhões e milhões de brasileiros que vivem na pobreza. E o sr. não conseguiu, com todas as suas reformas, atacar o problema da pobreza.
FHC - Desculpe-me, mas você está errado. Eu dei início...na verdade não fui eu, até mesmo antes...nós demos início aos programas de transformação no Brasil, e os resultados estão surgindo agora. Eu posso lhe dar os últimos resultados. Os últimos resultados são referentes à redução da pobreza. A diminuição da pobreza no Brasil tem sido impressionante. Desde 1995 até agora, a linha da pobreza, que era de 40%, caiu para cerca de 28%.
BBC - Mas sr. Cardoso, desculpe a interrupção, mas muitos brasileiros diriam que de fato a redução da pobreza no Brasil se deu de forma mais bem sucedida e muito mais acelerada depois que o sr. deixou o governo e a partir da posse do presidente Lula.
FHC - É verdade, mas por quê?
BBC - A percepção é de que Lula destinou muito mais recursos a programas de combate à pobreza, como o famoso Bolsa Família, que tem tirado milhões de pessoas da miséria absoluta.
FHC - Mas o primeiro passo foi estabilizar a economia. Com isso a linha da pobreza caiu de 40% para 30%. Este foi o Plano Real. Em seguida...
BBC - O sr. se refere à estabilização da moeda que combateu de fato a inflação?
FHC - Correto...
BBC - O que é claro, muita gente atribui ao presidente Lula...
FHC - Pode ser o que as pessoas acham, mas não quer dizer que seja verdade. A estabilização ocorreu em 1995, até antes disso, quando eu era ministro da Fazenda. Foi quando a inflação foi derrubada, e desde então tem se mantido em níveis baixos. Lula apresentou um programa diferente, ao qual não me oponho. Sou a favor. E desde então ele tem se beneficiado de uma situação econômica mais favorável e pôde dar mais dinheiro para essa gente, e portanto tem aumentado, eu concordo com você, mas fui eu que comecei. A mudança da situação do Brasil começou com o programa de estabilização econômica durante o governo do presidente Itamar Franco, e posteriormente diversos outros programas iniciados pelo meu governo e então é natural que o país esteja bem melhor agora.
BBC - Analisando o que aconteceu no seu governo e no governo do presidente Lula, o sr. agora diria ter aprendido que há limites para a aplicação da economia de mercado num país como o Brasil e que pode se aplicar neoliberalismo e programas de privatização apenas de modo limitado?
FHC - Para início de conversa eu nunca fui um neoliberal. Sou a favor da economia de mercado, mas também sou a favor de uma ação ativa do governo, do Estado. Eu decidi não privatizar algumas empresas estatais e optei pela privatização de outras. Um exemplo é o setor das telecomunicações. O que aconteceu com as telecomunicações? Tínhamos 800 mil telefones celulares no Brasil agora temos 120 milhões e todos têm acesso. Se você olhar para as empresas de energia e mineração verá que o que fiz foi transformar as empresas estatais em corporações. Em conseqüência, atualmente a Petrobras é uma empresa importantíssima. O Banco do Brasil também tem um desempenho muito bom. Portanto, isso não é suficiente para formar uma nação, é preciso muito mais do que isso. Você pode ver que eu nunca fui um neoliberal.
BBC - Voltando a um de seus pontos iniciais...apesar de todo o progresso a que o sr. está se referindo, o Brasil tem um problema fundamental com a corrupção na sua cultura política e cívica.
FHC - Por esta razão é que me referi ao sentimento de que não estava indo tão bem, era a sensação da classe média, que tem acesso à informação, de que a corrupção existe.
BBC - E o sr. disse que o presidente Lula tem sido muito leniente com o problema da corrupção dentro do próprio partido dele. Sabemos que 40 membros do PT estão sendo julgados, acusados de terem participado de um esquema de compra de votos que teria existido há alguns anos. O sr. acredita que o presidente Lula é pessoalmente responsável por isso?
FHC - Eu creio que ele é responsável por não ter sido mais forte. Lula poderia ter sido mais categórico, dizendo: "Isto é errado!" Recentemente, ao se referir a um de seus ex-ministros que foi condenado....não condenado....mas, indiciado pela Procuradoria da República, ele disse não acreditar que o ministro tenha tido um envolvimento real no caso.
BBC - Então o sr. acha que o presidente deve demonstrar uma liderança clara na questão da corrupção?
FHC - Creio que sim.
BBC - Nesse caso, o sr. demonstrou essa liderança clara? O sr. ocupou a presidência por dois mandatos...que tipo de liderança o sr. demonstrou?
FHC - Bom, não existe nenhum caso no meu governo de alguém que tenha sido indiciado ou algo parecido que tenha sido protegido por mim.
BBC - Isso nos leva à essência da minha questão, se me permite, pois pelo que sei o sr. nomeou para o cargo de procurador-geral o senhor Geraldo Brindeiro, que permaneceu no cargo durante anos e, segundo a imprensa brasileira, recebeu mais de 600 processos criminais contra funcionários do governo, tendo arquivado a grande maioria, o que acabou lhe valendo o apelido de "Engavetador Geral". E o sr. está tentando me dizer que isso siginifica que não houve nada de errado enquanto esteve no poder, ou que ele simplesmente resolveu "sentar" sobre as alegações?
FHC - Deixe-me dizer a você com bastante clareza. No Brasil, o procurador é totalmente independente do poder Executivo. Absolutamente independente.
BBC - Mas ele foi nomeado pelo sr.
FHC - Sim, mas ele era totalmente independente. Ele fez seu próprio julgamento. Naquela época, vários procuradores eram fortemente influenciados pelos partidos políticos e em conseqüência eles tentavam levantar acusações contra esta ou aquela pessoa. E eu nunca interferi no processo. Nunca, em nenhum daqueles casos.
BBC - Mas o que parece é que ao mesmo tempo em que o sr. me diz que Lula tem de ser forte, deve demonstrar liderança, o sr. está me dizendo que durante os oito anos de seu governo nenhum deputado, senador, nenhum membro do governo foi indiciado porque a política era inteiramente limpa?
FHC - Você pode me dar o nome de alguém que tenha sido considerado culpado? Ninguém foi acusado.
BBC - Mas o fato de ninguém ter sido acusado formalmente talvez sugira que...
FHC - Nunca ninguém foi nem acusado pela imprensa, nenhum dos meus ministros. E caso alguém tivesse sido acusado minha reação seria simplesmente demiti-lo. Isso é o que estou lhe dizendo.
BBC - OK, vamos deixar de lado o aspecto pessoal e passar para o quadro mais amplo. Claramente o sr. acredita que fracassou ao tentar mudar a cultura política do país quando esteve no poder, até porque o sr. mesmo já disse isso. Agora, refletindo sobre isso e vendo o que Lula está enfrentando, o que o sr. acha que um líder no Brasil deve fazer, no futuro, para mudar realmente esta cultura política, que o sr. mesmo admite ser um problema?
FHC - Eu também sou um sociólogo. Quando você diz que cabe a um líder mudar a cultura política, tenho a dizer que um líder pode dar um exemplo, pode impôr, mas isso é um processo muito mais amplo e não fica restrito a apenas um homem. Não estou acusando Lula por isso, o que estou fazendo é culpá-lo num caso específico em que ele poderia ter dito "não", ter dado um exemplo à nação. Para mudar o processo politico é uma longa história. É necessário mudar algumas regras, tem algumas implicações legais e é também preciso mudar a cultura. O que fiz foi tentar não deixar que o sistema partidário interferisse demais no governo e dar um nível maior de profissionalismo ao meu governo.
Leia a segunda parte da entrevista
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