segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Fernanda Montenegro: ''Lula é o homem mais feliz deste país''

Fernanda Montenegro: ''Lula é o homem mais feliz deste país''

A atriz Fernanda Montenegro, aos 78 anos e montando uma peça sobre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, diz que a idade lhe dá ''o direito de não votar''. Mas comenta que ''vê-se no rosto de Lula, no brilho dos seus olhos, que ele é o homem mais feliz deste país. Está feliz porque conseguiu o impossível. Temos que entender a viagem desse homem'', observa, sobre a façanha do operário-presidente. Veja a entrevista, dada no Rio e publicada neste domingo pelo Estado de S. Paulo.

Fernanda: crença "na arte e no trabalho"

Estado de S. Paulo: Como você conseguiu se preservar do assédio da imprensa?

Fernanda Montenegro: Hoje é quase impossível. Tem imprensa e imprensa. Essa indústria maluca das revistas de ''celebridades'' é por demais invasora. E muitas das ''celebridades'' vivem de se expor. Cada vez mais, as entrevistas são mais íntimas. A grande entrevista, lá atrás, da Leila Diniz, foi revolucionária e corajosa. As coisas começaram a caminhar mais para sua alma, seu útero, seu coração, suas entranhas. Eu, na minha sensibilidade, na minha forma de defesa, preservo um cantinho onde sou realmente eu. Onde vou buscar minhas forças, se é que as tenho.

Estado: Mas você não seria assim, mesmo que não fosse atriz?

Fernanda: Na minha profissão a gente já se exibe muito. Busca-se o outro diariamente, a cada segundo você se joga em cima do palco para ser julgado, amado ou detestado.

Estado: O que você acha da política?

Fernanda: Política? E o que é que eu sei do corpo a corpo da política? As informações que chegam até você são sempre uma coisa filtrada. Quando o governo deixa de ser poder e a oposição vai para o governo, só aí você acaba sabendo do jogo, muitas vezes nojento, dos bastidores. Às vezes levamos anos para saber o que aquilo representou. O cidadão desavisado vive ao Deus dará. A oposição, quando chega ao poder,denuncia o governo anterior e logo há uma composição, seguindo as normas da ''boa política responsável'' que tem que existir, dizem. Aí todo mundo se cala ou se compõe - e vamos vivendo. E eu não quero falar sobre isso, compreende? Estou falando, mas não domino o texto dessa peça, não estou por dentro da ''informação''. Em matéria de política, eu não sou e nunca fui vivandeira de partidos nem de governos.

Estado: Então, no que você acredita?

Fernanda: Na arte e no trabalho. O Brasil está sempre se refazendo, se propondo. A ministra Marina Silva disse uma coisa interessante outro dia. ''Cada governo que passa faz um pouquinho, sempre deixa alguma coisa que se junta com outra do governo seguinte e assim vai. No fim, pode-se chegar a uma coisa boa. E grande. Mas, nós já estamos nisso há 500 anos.

Estado: Por que não vamos mais longe?

Fernanda: É a nossa herança de colonizados. Mas lembro novamente o que disse a ministra Marina, sobre cada um ''fazer um bocadinho''. Getúlio fez um bocadão, criou toda uma estrutura para o Brasil se industrializar. Sou uma filha de operário. Sei na pele. Getúlio criou as férias, o horário de trabalho, o dia de folga, a assistência social. Mas esse ganho social que está hoje aí foi montado dentro de uma ditadura.

Estado: Estamos sendo governados por um ex-operário. O que acha disto?


Fernanda: Vê-se no rosto de Lula, no brilho dos seus olhos, que ele é o homem mais feliz deste país. Está feliz porque conseguiu o impossível. Temos que entender a viagem desse homem. Ele vive o seu milagre em total arrebatamento.

Estado: Ele faz milagre no país?

Fernanda: Aí já é outra coisa. Eu vejo o fenômeno desse personagem espantoso. Ele é um ator de extraordinário carisma, que tem a casa cheia todo dia. Tanto que tem mais de 60% de aprovação. Tem uma platéia infindável, está virando um mito. Mas a educação vai mal e a saúde vai pior. As cestas básicas e o salário-família estão segurando o rojão. Na miséria total, um prato de comida pode ser um grande milagre. É um socorro momentâneo? É. É o bastante? Não. Economicamente, a informação é que o Brasil vai ótimo. E toca o bonde.

Estado: Você votou no Lula?

Fernanda: A minha idade me dá o direito de não votar. Passei a assistir o que se passa. Minha contribuição é trabalhar e pagar 1/3 de tudo que eu ganho com impostos. Pertenço a uma geração que sobreviveu a todo tipo de engajamentos e ideologias. Infelizmente não sou uma cientista política, nem jornalista especializada. A pergunta a ser feita é: porque um operário chegou ao poder se antes havia ali um acadêmico, professor, com grande capacidade cultural e administrativa? Temos que olhar o caminho de todos esses governos que precederam ao atual. Há sempre bastidores, a hora em que se compuseram ou não. A gente conta a história da nossa república por meio de conchavos inimagináveis.

Estado: Seu depoimento é importante. Na sua visão, porque as coisas demoram tanto para funcionar no Brasil, se é que funcionam?

Fernanda: Para não derrubar tudo o que não funcionou antes, todos colaboraram. Os personagens não nascem sozinhos. A peça, a história, não vem sozinha. Eu não dou nenhuma credencial a mim mesma para definir questões tão importantes. A minha participação são o meu trabalho e a minha vocação. Gosto do meu oficio, que começa e acaba nele mesmo, mas, sem deixar de me abismar quando, às vezes, algo funciona ou quando, quase sempre, enguiça.

Estado: O Brasil evoluiu na área cultural?

Fernanda: Ninguém tem o poder de impedir um artista de criar. Por uma anomalia difícil de explicar, tínhamos crédito de público e de acesso a financiamento bancário porque nossas bilheterias eram nossa garantia. Com ela pagávamos nossos acertos e erros, nosso espetáculo careta ou contestador. Aí veio a ''redentora'' (o golpe militar de 1964 foi chamado, por seus autores, de ''revolução redentora'') e tudo foi se transformando. E, agravando tudo, uma censura desesperada. Os bancos secaram, o sistema de produção teatral foi mudando e, pouco a pouco, caímos ou nos foi oferecido o patrocínio estatal. Mais uma vez, hoje, as leis de incentivo à cultura vão ser mudadas. A política é dar total atenção às centenas de grupos teatrais, culturais e musicais do chamado Brasil profundo. Dou o meu voto de total esperança a esse projeto. O resultado real só veremos no futuro.

Estado: Quantos filmes e peças você fez nestes últimos dez anos?

Fernanda: Fiz cinco filmes, duas minisséries, um novela e faço inúmeras oficinas de dramaturgia pelo Brasil. Mas sou exceção, não porque seja melhor, mas porque ainda me resta vontade de viver. Os artistas ''consagrados'' têm talvez mais facilidade na sobrevivência. Eu não concordo é que se crie um muro entre aqueles que são definidos como ''os consagrados'' e aqueles que estão a caminho dessa ''consagração''. Isso é dividir para governar. Os supostos ''consagrados'' são praticamente forçados a empresariar seus colegas ou juntar-se em cooperativas, responsabilizando-se por encenações, manutenção, compromissos trabalhistas, taxações, aluguel do espaço, divulgação. Até uns 20 anos atrás, as bilheterias suportavam isso com total independência. Estou falando do teatro profissional.

Estado: O orçamento para cultura, saúde e educação é mal direcionado?

Fernanda: Cada governo chega ao fim com estatísticas maravilhosas, dizendo que todos estão na escola, todos foram alfabetizados e a saúde nunca esteve melhor. Aí entra outro governo, de oposição, e diz que todos estão sem escola, analfabetos, sem saúde...

Estado: Por que você deu certo?

Fernanda: Se é que eu dei certo, é porque eu trabalhei muito e hoje trabalho mais ainda. Talento não é tudo. Eu e meu marido trabalhamos exaustivamente. Não como uma escravidão, mas porque é isso que nós amamos fazer. Venho de gente de ofício. Tenho filhos que trabalham muito, colegas com filhos que trabalham muito também. A minha geração, os que estão ainda de pé, continua firme.

Estado: Você pretende parar um dia?

Fernanda: Não tenho esse pensamento. Estou viva. Um dia qualquer, a máquina vai parar. Hoje ainda não tenho condições físicas, psíquicas e também econômicas para parar. Você se vicia na adrenalina dessa nossa vida.

Fonte: O Estado de S. Paulo

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