domingo, 20 de julho de 2008

Mauro Carrara: Ali Kamel, o "mais pior" dos jornalistas



Este merece! Quem acompanha a carreira do maestro global da notícia sabe de seus percalços com o verdadeiro jornalismo. Textos travados, vocabulário escasso e enorme dificuldade com a apuração dos fatos. Na revista Veja, na segunda metade da década de 80, virou motivo de piada depois de passar dois dias tentando um par de "aspas" de Dom Pedro Casaldáliga, o bispo progressista então ameaçado pela Congregação para a Doutrina da Fé, dirigida pelo cardeal Ratzinger.


Por Mauro Carrara, na NovaE



Kamel entrava por uma porta da matriz de São Félix do Araguaia, enquanto o lépido prelado espanholito saía pela outra. Exaurido, molhado e humilhado, sem qualquer informação, o repórter da Veja retornou ao Rio de Janeiro, onde bolou uma pensata para enfiar nas colunetas anti-Teologia da Libertação da revista do Seo Civita.


É longa a lista de reveses do jornalista, longa o bastante para a edição de uma bela brochura de inconfidências. Se não se saía lá muito bem como repórter e redator, Kamel empenhou-se em mostrar fidelidade canina a seus patrões. Como sabujo, prosperou. Em O Globo, notabilizou-se como chefete, a um só tempo fraco e cruel. Dirigindo-se aos subordinados, costumava repetir um argumento de coação: "você vai fazer porque estou mandando, e porque minha mãe precisa ler essa matéria amanhã cedo".


Kamel é autor do livro Não Somos Racistas, um espetacular exercício de farsa epistemológica, em que ousa até distorcer estudos do finado Florestan Fernandes. Nessa peça velhaca, destinada a desqualificar a instituição de cotas raciais nas universidades, o jornalista afirma, em cândida patifaria, que findará a desigualdade quando todos tiverem as mesmas condições. Em 200 páginas marotas, no entanto, não logra estabelecer um modelo alternativo para que se obtenha um alinhamento na oferta de oportunidades.


Tamanhas demonstrações de afinação com o pensamento dos barões da mídia renderam a Kamel o cargo de diretor de jornalismo da Rede Globo de Televisão. Neste Agosto de rescaldo, estreou como assessor, e escreveu A Grande Imprensa, conjunto de mal traçadas linhas destinadas a apresentar defesa da mídia monopolista, fortemente criticada depois da cobertura criminosa da tragédia com o Airbus da TAM.


Kamel afirma que a "grande imprensa" vem sendo atacada por setores "autoritários e antidemocráticos" que "sentem-se ameaçados". Cabe perguntar ao assessor de imprensa dos barões quais seriam os tais setores autoritários. Caso se refira ao Governo Federal, vale uma reflexão sobre a tal "liberdade de imprensa", obsessivamente evocada pelos golpistas brasileiros. Se tal direito é garantido ao meios de comunicação, por que não pode ser estendido àqueles que, por eles, se julgam injuriados, caluniados e difamados? Em sua sofística de botequim, Kamel parte do pressuposto absurdo de que a liberdade de expressão é unilateral. Vale, portanto, apenas para aqueles que detêm os meios de informação, e nunca para aqueles que neles são detratados.


Segundo Kamel, o tais setores autoritários consideram notícia apenas aquilo que não "atrapalha os seus planos de poder". A crítica tem endereço: o governo Lula e os partidos da base aliada. Não se vê, entretanto, o capitão-do-mato dos Marinho exigir autonomia quando jornalistas, inclusive da Rede Globo, são pressionados e ameaçados por figuras como o governador de São Paulo, José Serra, interventor eventual e informal em várias redações, nas quais freqüentemente faz rolar cabeças.


Ao criticar aqueles que se mobilizam contra a distorção do noticiário, Kamel diz que "mentem, atribuem à grande imprensa coisas que ela não fez e denunciam conspirações inexistentes". Cabe novamente indagar: quem mente? Ex-globais como Paulo Henrique Amorim, Azenha e Rodrigo Vianna têm mostrado ao mundo, para perfeito entendimento, até dos entes planetários, que a emissora dos Marinho inventa, manipula e distorce. O relato público de Vianna, em especial, mostra de que maneira a Rede Globo se consolidou como podre partido político, conservador, fomentador do vale-tudo na campanha de desconstrução de imagens públicas.


A Rede Globo e a grande imprensa têm longa folha corrida. Do caso Escola Base ao caso TAM, há uma extensa relação de abusos, de distorções, de julgamentos sumários e de imputações indevidas. Conspirações? Existem, sim. Basta relembrar o que ocorreu quando do caso "dossiê", que levou a eleição presidencial ao segundo turno, em 2.006. Que Kamel nos responda:


a) por que a grande imprensa evitou qualquer investigação sobre a participação de José Serra e outros membros do PSDB na máfia dos sanguessugas?


b) por que até agora a Rede Globo não explicou de que modo foi obtida a foto do dinheiro pago pela documentação?


Aposto que Kamel não explicará. Sabe-se da vergonhosa tramóia que envolveu o delegado-15-minutos-de-fama e os reporteiros Boccardi e Tralli.


Seguindo em sua peça de defesa, Kamel arrisca um refinamento literário: "É uma tautologia, mas, na atual conjuntura, vale dizer: o jornalismo só é livre e independente quando não depende de nenhuma fonte exclusiva de financiamento". Poder-se-ia criticá-lo pelo pecado sintático, mas reza o livro da boa educação que nos restrinjamos ao debate de idéias.


"Livre" e "independente" são termos que não deveriam ser utilizados no caso de grandes redes de televisão. Designação imprópria. Não há ingenuidade que justifique a assertiva do assessor de imprensa. Logicamente, as grandes redes de TV não defendem um interesse específico e singular, mas uma doutrina política de viés conservador, propagandeada pelas grandes corporações e pelos setores políticos que lhes servem. Sabemos muito bem, por exemplo, por qual breviário ora o presidente da Philips.


Segundo Kamel, somente a grande imprensa "tem os meios para investir em recursos humanos e tecnológicos capazes de torná-la apta a noticiar os fatos com rapidez, correção, isenção e pluralismo, sem jamais se preocupar se o que é noticiado vai ser bom ou ruim para este ou aquele cliente, para este ou aquele governo ".


Os brasileiros viram, no entanto, a propalada "isenção" da Globo na cobertura de duas tragédias recentes. Na primeira, na abertura da cratera do metrô, jamais se apresentou qualquer conjectura desfavorável ao governo de José Serra, preservado com máximo critério. No caso TAM, entretanto, a Globo adiantou-se em apresentar a causa do acidente, atribuindo-o à pista e, por tabela, ao presidente da República. Talvez, o critério de "isenção" seja o mesmo aplicado em 1989, na edição criminosa do debate presidencial.


Por fim, ao analisar o papel da imprensa na cobertura da tragédia da TAM, Kamel nos apresenta a pérola de seu texto: "como não é pitonisa, como não é adivinha, desde o primeiro instante foi, honestamente, testando hipóteses, montando um quebra-cabeça que está longe do fim ". Ora, caro assessor, testando hipóteses?? Que que é isso? Se não é pitonisa, talvez copie os métodos do mago Merlim, em suas estripulias de invenção. Como testar, Seo Kamel? Deontologicamente, como admitir que a imprensa assuma esse papel? Estava em jogo, ali, a reputação de personalidades públicas, a imagem de técnicos de diversas áreas e a sensibilidade das famílias das vítimas da tragédia. A imprensa precisa é investigar, mas jamais emitir laudos. Pior, porque agora, admite-se que a Globo chutava, arriscava e apostava. Juntou-se a imperícia, a irresponsabilidade e a intenção de dolo.


O assessor Kamel afirma ainda que o grande público tem discernimento. Ora, se a Globo descobriu as capacidades do povo, por que não o respeita? Afinal, a maior parte dessas pessoas elegeu Luiz Inácio Lula da Silva duas vezes para a presidência da República. E se o telespectador exige mesmo informação de qualidade, por que William Bonner o compara a Homer Simpson? Ora, Seo Kamel, diante de tão incongruente argumentação, adivinhamos a causa de seu fracasso no jornalismo. E caso não dê refinamento ao produto de seu novo trabalho, é certo que também perderá o emprego de assessor.

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