Ruíram as cidadelas que protegiam o deputado estadual do Pará, Luiz Afonso Sefer (ex-DEM), da acusação de pedofilia. A nova trajetória do caso aponta no rumo da condenação. A culpa é apenas individual?,
Pedofilia: a adoção do crime
Durante o seu depoimento à CPI do Senado sobre a pedofilia, que se deslocou a Belém na semana passada para apurar alguns casos no Pará, o deputado Luiz Afonso Sefer protestou contra as interferências do presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito, senador Magno Malta (PR-ES): "O senhor não está me deixando seguir o meu enredo", reclamou.
A frase tem um significado mais profundo do que pode ter pensado o próprio deputado ao dizê-la. Sefer foi ao antigo plenário da Assembléia Legislativa levando os filhos, sobrinhos e o pai, Elias Sefer, detentor de vários cargos públicos durante o regime militar, o principal dos quais foi a superintendência da Sudam, por patrocínio do político mais influente desse período, o coronel Jarbas Passarinho.
Acusado de praticar abuso sexual contra uma menina, o deputado parecia ter começado a depor com a presunção de que seria o dono do "enredo". Sua história seria recebida como verdadeira e o desfecho seria coerente com sua alegação de inocência. Mas as interrupções do senador capixaba, que o irritaram, pareciam destinadas a adverti-lo que sua autoria se restringia ao crime, não à reconstituição dos fatos. A história já escapara ao seu controle. Ele podia dizer o que quisesse, só não podia mais presumir a credibilidade como reação às suas palavras.
A decisão do deputado de colocar sua família na platéia para ouvi-lo foi temerária. Quando a CPI não aceitou que a audiência fosse secreta, como ele queria, o cenário do enredo começou a mudar. Mudou também a presunção de inocência, que alguém podia ter deduzido da coragem do acusado de enfrentar uma sessão difícil, como aquela prometia ser, diante dos seus parentes mais próximos. A mudança ocorreu quando ele começou a tecer o enredo traçado previamente, com certeza sob a orientação do seu advogado, Osvaldo Serrão, um dos mais antigos e atuantes criminalistas do fórum de Belém: atacar a menor que o acusou de havê-la estuprado e submetido a outras violências sexuais.
Se, dos 9 aos 12 anos, aquela menina se revelou tão devassa e destituída da mínima estrutura moral, como é que o ex-deputado do DEM a manteve em sua casa, ao lado dos seus filhos, e ainda tentou assumir a guarda legal dela no ano passado? A guarda foi concedida prontamente, ainda que em caráter provisório, pelo juiz da infância e da juventude, José Maria Teixeira do Rosário, que não julgou necessário dispor de um parecer técnico, da assistência social, por causa da figura pública do deputado, médico e dono de hospitais (embora, na ocasião, vivendo separado de sua segunda esposa).
Não foi uma decisão em colisão com a lei e se baseou na imagem do requerente da guarda. O problema é que, de súbito, cessou o interesse de Sefer e o juiz, diante da nova iniciativa, da desistência, mandou arquivar o processo, sem perquirir pelas razões da mudança de interesse, sem dar atenção ao outro lado da questão. Tudo indica que o fato tinha relação com o vazamento de informações sobre a relação do parlamentar com a menor, que fugiu da sua casa, passou a ter vida independente e fez a denúncia.
O assunto começou a circular pelos bastidores, enquanto Sefer continuava a desfrutar o seu prestígio político, como um dos mais antigos deputados estaduais em atividade. Chegou a ser cogitado pela governadora Ana Júlia Carepa para presidir a Assembléia Legislativa, como alternativa à permanência do PMDB no posto. Só três meses depois que a denúncia da menor foi registrada, apareceu a primeira notícia sobre o caso nas páginas do Diário do Pará, no dia 3 de dezembro do ano passado. O jornal, porém, não deu seqüência à cobertura, apesar da gravidade da informação. O tema não entrou nas páginas de O Liberal durante mais de dois meses a partir da revelação pública do fato.
Os donos do jornal tentaram defender seu amigo, frequentador dos gabinetes dos Maiorana. Mas a evidência do crime era tão grande que a primeira matéria do jornal, no dia 4, foi a mais pesada de todas as referências até então feitas, inclusive pelos blogs, que romperam a cortina de silêncio e sustentaram a cobertura, pela qual a grande imprensa não se interessara. Os detalhes mais escabrosos e chocantes do abuso sexual praticado pelo deputado foram publicados na primeira reportagem de O Liberal sobre o caso.
Bastaria essa circunstância para alertar Luiz Afonso Sefer que o seu "enredo" não se sustentaria e que sua preservação por tantos meses só tinha uma explicação: o hábito provinciano ou viciado que certa elite cultiva no Pará de achar que, se esconder seus desatinos internamente, comprando consciências ou negociando acordos, evitará o interesse da opinião pública. O rompimento desse silêncio conivente, em várias dessas situações, precisa vir de fora para dentro, quando a imprensa nacional se interessa pelo que está além do próprio umbigo - freqüentemente para explorar o exótico, o macabro, o sensacionalista. Mas também para quebrar a regra do silêncio comprado, negociado.
Todas as pessoas que leram o depoimento da menor violentada e as provas juntadas reagiram de uma forma unânime: acreditando nas acusações feitas ao deputado, inclusive seus aliados, como a classe política (incluindo parlamentares de outros partidos) e O Liberal. O testemunho da menor é tão incisivo e consistente, sem contradições, e com detalhes que ela própria não poderia ter criado (como o rompimento cirúrgico do hímen), que a trajetória a partir daí parecia inevitável: caírem todas as cidadelas que constituíam a defesa do deputado.
Dentre as mais fortes, a mais recente foi a do jornal dos Maiorana, que, talvez pela ênfase, tenha buscado se livrar do passado de compromisso e criar uma imagem mais favorável para o momento da condenação final do personagem. Destino que se reforçou quando, no dia seguinte ao depoimento do deputado, o Ministério Público o denunciou e pediu sua prisão preventiva pelos crimes de violência sexual, cárcere privado e maus-tratos. Ameaçado de ser expulso e assim perder o mandato, Sefer se desligou do DEM, do qual até então era o principal representante no legislativo estadual. Providência que dificilmente evitará que seus pares se vejam obrigados a cassá-lo, a manter-se a progressão. Tendência não alterada nem pela negativa liminar de prisão, pelo desembargador João Maroja.
Com ratos pulando de todos os lados, não há mais dúvida que o navio está mesmo afundando. Espera-se, porém, que as borbulhas que emergem dele não sejam consideradas como a última evidência dessa história ruim. Durante o desenrolar do "enredo", um dos argumentos mais usados em benefício do réu foi de que a adoção de meninas pobres do interior por pessoas da capital é um hábito histórico dos paraenses.
É verdade. A revelação de um episódio tão torpe quanto o atual também deve despertar o interesse da sociedade para rever essa prática, que mudou acompanhando a mudança das mentalidades no curso do tempo. O que podia ser uma extensão das relações de compadrio está assumindo a configuração mais abertamente nociva, criminosa. Com suas caracterizações individuais, é verdade, a lançar sua lama e prejuízos sobre famílias, mas com a responsabilidade de todos, disfarçando o mal ou tratando de eliminá-lo. Numa situação dessas, ninguém é inocente.
Fonte: Adital
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