25/05/2010 - 10:39h
O acordo com o Irã e o desafio à tutela de Washington
Brasil e Turquia decidiram fazer um contrapeso aos 30 anos de tolice americana na relação com Teerã
GRAHAM E. FULLER, GLOBAL VIEWPOINT – O Estado de S.Paulo
É EX-VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE INTELIGÊNCIA DA CIA
Se Washington acredita que agora enfrenta complicações para obter a aprovação de sanções contra o Irã no Conselho de Segurança das ONU, essa não é nem a metade do problema. Muito mais importante do que isso é a sutil mudança nas relações internacionais introduzida pelos gestos de Brasil e Turquia.
Essas duas potências de médias proporções acabam de desafiar a tutela de Washington na definição da estratégia nuclear em relação ao Irã e seguiram uma iniciativa própria para persuadir o país a aceitar um acordo. Além de inteiramente independente, a iniciativa avançou mesmo diante dos alertas consideravelmente grosseiros feitos pelos americanos, que pediam aos países o abandono das tentativas de negociação – apesar de seus termos serem muito semelhantes aos da proposta feita ao Irã pelos EUA no ano passado. Para piorar, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, e o premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, ousaram obter sucesso em suas negociações com o Irã, enquanto Washington previa publicamente seu fracasso certo (e tão esperado).
Será que os iranianos estão simplesmente envolvendo-se em outra trapaça, com o objetivo de ganhar tempo (manobra na qual são especialistas)? Ou será que ocorreu algo mais profundo? Em primeiro lugar, são importantes não apenas os termos do acordo, mas também seus mensageiros e o clima político no qual ele é celebrado.
Durante décadas, Washington relacionou-se com o Irã – quase sempre de maneira indireta – com truculência e beligerância consideráveis como trilha sonora das “negociações”. Isso era considerado normal – nada mais do que a única superpotência mundial exigindo dos demais países que atendam aos seus interesses estratégicos.
Quando Lula e Erdogan foram a Teerã, o jogo foi completamente diferente. A mudança não estava no conteúdo, mas principalmente nos negociadores, no local da reunião e no clima. Desta vez, Teerã não sentiu como se estivesse fazendo concessões à pressão exercida por uma superpotência, e sim aceitando um pedido razoável feito por dois Estados considerados seus pares sem nenhum histórico de imperialismo no Irã.
Num certo sentido, o acordo estava quase destinado a dar certo. O que o Irã mais deseja é frustrar o domínio americano sobre a ordem internacional, e principalmente sua capacidade de ditar seus termos ao Oriente Médio. Se o Irã aceitasse fazer alguma concessão nas questões nucleares, não haveria melhor forma de fazê-lo do que aceitar a proposta de dois Estados bem sucedidos e respeitados. Caso Teerã recusasse a oferta, poderia devastar o próprio conceito de iniciativas independentes, alternativas e desvinculadas dos EUA na estratégia internacional. Para o Irã, uma resposta positiva a esta abordagem conjunta fazia todo o sentido.
O mesmo vale para China e Rússia. Após o sucesso obtido por Lula e Erdogan, a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, proclamou imediatamente seu sucesso na consolidação do apoio de Pequim e Moscou a sanções mais rigorosas contra o Irã – uma resposta surpreendentemente insultante aos notáveis resultados das negociações promovidas por brasileiros e turcos. Afinal, estes países são extremamente importantes para os interesses regionais e globais dos EUA. Esnobá-los desta forma foi um imenso erro.
Mas será que realmente acreditamos que Hillary tenha conquistado o apoio de Rússia e China? Assim como a Teerã não faltaram incentivos para aceitar uma proposta feita por “iguais”, Rússia e China também encontram motivos de sobra para aprovar esta iniciativa de Brasil e Turquia. É verdade que os termos do acordo não são sem importância, mas, para esses países, é muito mais relevante a lenta e inexorável decadência da capacidade americana de ditar os termos da política internacional e de satisfazer seus próprios objetivos. É exatamente essa a meta principal da estratégia russa e chinesa na política externa. No fim, esses países não permitirão que a abordagem de linha dura dos EUA prevaleça sobre a iniciativa brasileira e turca no Conselho de Segurança da ONU, mesmo que sejam necessários alguns ajustes do acordo obtido por Brasil e Turquia.
Polaridade. É claro que China e Rússia representam a polaridade alternativa na luta emergente para pôr fim à hegemonia americana. Mas é mais importante o fato de agora esses países testemunharem o afastamento do centro da política internacional em relação aos EUA.
Os dois países que desafiaram os desejos americanos não são meros agitadores do terceiro mundo tentando ganhar fama à custa dos EUA. Trata-se de dois grandes países considerados amigos próximos dos EUA. Isso torna sua afronta ainda mais cruel. Esses acontecimentos são profundos sinais dos tempos. O problema do poder unilateral está no fato de ele se tornar invariavelmente sujeito a tolices ocasionais na ausência de freios e contrapesos.
Os americanos acreditam em freios e contrapesos quando se trata de sua Constituição. Quando Washington entrou em sua quarta década de paralisia e incompetência no relacionamento com o Irã, ainda incapaz de nem sequer conversar com o país, essa abordagem exacerbou o problema, fortaleceu o Irã e as forças do radicalismo no Oriente Médio, polarizou as emoções e, pior, fracassou em todos os sentidos. Será que o mundo não deveria dar as boas-vindas aos gestos de dois países importantes, responsáveis, democráticos e racionais que decidiram intervir e estabelecer um contrapeso para décadas de tolice na política externa americana? É por isso que freios e contrapesos são importantes, e é por isso que o centro está se deslocando.
Talvez os “Estados renegados” – termo na moda em Washington para designar países recalcitrantes que não se submetem à linha ditada pelos EUA – possam responder melhor a novas abordagens livres das antigas técnicas imperialistas do intervencionismo e dos ultimatos. Enquanto isso, os EUA correm o risco de tornar-se seu próprio “Estado fracassado” em termos de ser capazes de exercer uma liderança internacional competente e eficaz após a queda da União Soviética. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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