quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Lula-Roussef: uma estreia

 

Por Antônio Martins, do Outras Palavras*

Nem dependência, nem conflito. A primeira semana após as eleições mostrou que o presidente e sua sucessora podem compor, a partir de 2011, uma inovadora dobradinha política

Nunca se sabe quanto vai durar. Mas Lula da Silva e Dilma Roussef responderam à altura, esta semana, a quem insistia em ver a relação política que mantêm com precária, de submissão ou tendente ao conflito. Em poucos dias, eles dissiparam com fineza uma agenda hostil, que sobrevivera aos conflitos da campanha; introduziram no debate nacional três temas de relevo (negociação do salário mínimo com as centrais sindicais, volta da CPMF e reforma política); e dividiram a oposição.

De quebra, sinalizaram que, a partir de 2011, a presidente no posto e o ex-presidente podem estabelecer uma “dobradinha” inédita na história da República. Um governa, com perfil alto. O outro, livre dos ônus do governo, sente-se à vontade para debater, com a opinião pública, os grandes temas de que os chefes de Estado são em geral privados, pelos compromissos políticos que são levados a assumir.

A novidade começou a ser construída na segunda-feira, menos de 24 horas após a vitória de Dilma nas urnas. Surpreendentemente, para quem enfrentou seis meses de campanha árdua e a oposição quase unânime dos meios de comunicação tradicional, a presidente provocou duas entrevistas em programas de TV.

Rompeu a tradição já aí. Concedeu o primeiro diálogo a duas jornalistas (Ana Paula Padrão e Adriana Araújo) da TV Record – preterindo a Globo, que a sabotou por meses. Só mais tarde, encontrou-se com Willian Bonner, na bancada do Jornal Nacional. Sabia que seria recebida com tapete vermelho: embora tenha tentado atacá-la de múltiplas maneiras, durante a campanha eleitoral, a Rede Globo tem consciência de que não sobrevive sem o apoio do governo federal. Bonner qualificou sua presença como “uma honra” e “uma deferência”.

Armou-se, de ambos os lados, um duplo discurso. No Jornal Nacional, a entrevista de Dilma durou cerca de 25 minutos e foi entremeada por matérias sobre o passado da presidente. Pela primeira vez, ela foi tratada como ser humano normal – não como um satã a ser exorcizado. Já o diário O Globo continuava atirando contra a presidente eleita. Nas edições de segunda a quarta-feiras, destacou um suposto conflito dela com vice Michel Temer, na formação da “equipe de transição” entre o governo atual e o futuro. Propalou as alegadas dificuldades para formar o ministério. Acima de tudo, insinuava a mitológica necessidade de um “ajuste fiscal” para enfrentar a “dura” realidade das contas públicas.

Não era um discurso apenas de O Globo. No mesmo período, os jornais referiram-se em uníssono à premência de um “choque de realidade”. Chegaram a especular, possivelmente alimentados por setores do Planalto (bom dia, ex-ministro Palocci…), que Lula estaria disposto a assumir o ônus de medidas impopulares, para livrar Dilma do desgaste.


A recém-eleita também jogou com dupla face. Foi simpática a Bonner (e carinhosa com as jornalistas da Record). Tirou proveito da trégua proporcionada pela mídia (Luís Nassif notou que os leitores sinceros de Veja certamente se desconcertaram, ao depararem, após as eleições, com uma edição especial da revista, quase-bajulatória a Dilma). Mas Dilma cuidou de defender sua própria agenda, demarcando uma diferença nítida em relação ao discurso dos jornais. Declarou-se comprometida com a estabilidade econômica e cautelosa diante da crise mundial. Frisou, no entanto, que não reduzirá nem os programas sociais, nem os investimentos

Um passo adiante viria na entrevista coletiva que ela (acompanhada de Lula) concedeu na manhã de quinta-feira (4/11). Ali começou a se inverter o jogo, e a se explicitar a possível dobradinha entre a presidente e o ex-presidente-ultrapopular, a partir de 2011.

O tema novo foi a CPMF. Numa espécie de preâmbulo ao diálogo de Dilma com os jornalistas, Lula voltou a se declarar favorável ao imposto – que, se reintroduzido em favor da Saúde, representará uma nova forma de redistribuição, o oposto do pretendido pela mídia e os conservadores.

Questionada a seguir, Dilma tratou do tema pela tangente. Afirmou que não pretende propor ao congresso leis para a recriação do imposto (contou com a desinformação dos presentes: um projeto nesse sentido já tramita no Legislativo). Ressaltou, contudo, que um número expressivo de governadores é partidário do tributo e que, como presidente, terá de dialogar com eles.

Horas depois da entrevista, rumou para quatro dias de descanso em Itacaré, no sul da Bahia. Voltará ao foco na semana que vem, em Moçambique (não espere a presença ampla da velha mídia brasileira) e, dias 10 e 11, na reunião presidencial do G-20 (se possível, acompanhe pelos blogs ou pelos jornais internacionais).

Por permanecer em cena, Lula protagonizou outro episódio. Na quinta-feira, presidiu uma das últimas reuniões ministeriais de seu governo. Não deu entrevistas ao final. Mas mandou um recado eloquente. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, declarou à imprensa que o atual presidente “se empenhará como um leão” por uma reforma política. Pretende vê-la concretizada ainda em 2011. E nela terá uma de suas prioridades, no próximo ano.

A reintrodução da CPMF dividiu a oposição. O deputado Paulo Bornhausen, do DEM (o partido mais derrotado nas últimas eleições) opôs-se com alarido. Mas o governador recém-eleito de Minas, Antonio Anastasia, saudou a proposta. Diante da ideia de reforma política, restou à mídia resmungar. Na sexta-feira, a Folha lembrou que Lula prometera, dias antes, comportar-se, a partir de 2011, como “presidente-posto”. Viu a “nova” intenção do presidente como contraditória com o anúncio anterior.

Presa ao passado, deixou de captar a novidade. Não enxergou que o possível papel de Lula nada tem a ver com o exercício da Presidência. Se concretizado, significará algo ainda não visto na história das instituições do poder, no Brasil: semelhante uma dupla de ataque, para fazer referência às metáforas futebolísticas de Lula. Em tal desenho, a presidente – Dilma – exerce o poder institucional. Segue com rigor a liturgia do posto. Desempenha a atividade de modo que pode surpreender (ela esteve “sempre segura e à vontade” esta semana, para usar as palavras do jornalista Fernando Barros Silva, da Folha, insuspeito de protegê-la).

Mas age em conjunto com alguém que complementa seu papel: um ex-presidente que é, além de extremamente popular, um mestre na mobilização social e no debate de ideias em círculos amplos. Alguém que, ao contrário do chefe de Estado, não está atado aos compromissos com outras forças políticas, nem à formalidade e cerimônia do posto. Que alterna intervenções pontuais, nos grandes temas brasileiros e atuação intensa nos fóruns internacionais – talvez respaldado por um posto que amplie visibilidade e não constranja a burocracias.

Este possível dueto, que se estabeleceria no plano do poder institucional, seria favorável, inclusive, à nova cultura política, que valoriza a ação autônoma da sociedade civil. O arranjo contribuiria para diluir a figura majestática do chefe do Executivo. Abriria mais espaço para que se expressem outras fontes de reflexão e formulação de projetos alternativos – os movimentos sociais e as ONGs, por exemplo.

A hipótese da dobradinha é – não custa repetir – algo inédito na vida republicana brasileira, e raríssimo em plano mundial. Também por isso, vale a pena acompanhar a evolução da novidade.

*Para conhecer o portal Outras palavras acesse http://www.ponto.outraspalavras.net/

 

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