quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O aborto como cabo eleitoral

Luciano Rezende *

 

Após a eleição presidencial, com a poeira mais baixa depois da saraivada de baixarias, é importante voltar ao tema do aborto, tão propalado na campanha eleitoral pelos tucanos e setores religiosos conservadores.

 

O oportunismo eleitoreiro de direita conseguiu pautar um debate caro à sociedade como se fosse a disputa de dois campos opostos: de um lado os defensores da vida e, do outro, os pregoeiros da morte . Nunca é demais lembrar que Adolf Hitler, nessa linha de raciocínio, foi o maior defensor da vida humana em toda a história da civilização, tamanho foi seu empenho em criminalizar o aborto que, antes de sua chegada ao poder, era legal na Alemanha.

Seguindo essa mesma lógica, a Igreja só veio a defender a vida de uns tempos pra cá. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, por exemplo, não consideravam como homicídio o aborto nos primeiros meses de gestação, alegando que o feto em nada aparentava com um ser humano. E era esse o entendimento da Igreja, consagrado no Concílio de Viena em 1932. “A primeira compilação da lei canônica da Igreja católica sustentava que o aborto era homicídio apenas depois de o feto já estar ‘formado’ – aproximadamente no final do terceiro trimestre”, nos lembra Carl Sagan, em seu livro Bilhões e bilhões¹. “O Talmude judaico ensina que o feto não é uma pessoa e não tem direitos. O Antigo e o Novo Testamento – ricos em proibições espantosamente detalhadas a respeito de vestimentas, dietas e palavras permitidas – não contêm uma única palavra proibindo de modo específico o aborto. A única passagem, remotamente relevante (Êxodo 21:22), decreta que se houver uma briga e uma mulher grávida for acidentalmente machucada e forçada a abortar, o atacante deve pagar uma multa”, ressalta o astrônomo estadunidense.

Sagan assinala ainda que em seu país, antes de 1900, não havia nenhuma proibição ao aborto, pelo contrário, podiam-se encontrar anúncios de remédios para induzir ao abortamento em quase todos os jornais, inclusive em publicações da própria Igreja católica (!). Mas a partir de 1900 começa a haver uma reviravolta, que nada tem a ver com a religião. Os EUA passavam de uma economia agrária para uma sociedade urbano-industrial e uma das taxas de natalidade mais altas do mundo passou a recuar sensivelmente. Algo precisava ser feito.

De lá pra cá muito contorcionismo intelectual foi feito para justificar a criminalização do aborto. Uma das mais importantes é a que tenta definir o conceito da vida. Mas não se trata de qualquer vida, apenas da vida humana, tal como foi concebida à imagem e semelhança de Deus pai.

Também nesta seara, o grande divulgador científico Carl Sagan nos brinda com uma belíssima reflexão sobre a vida, ressaltando que “apesar de muitas afirmações em contrário, a vida não começa na concepção: é uma cadeia ininterrupta que remonta quase à origem da Terra, quase 4,6 bilhões de anos atrás. (...) Todo espermatozóide e todo óvulo humano são, sem sombra de dúvida, vivos. Não são seres humanos, é claro. No entanto, pode-se argumentar que um óvulo fertilizado também não é um ser humano.”

Mas uma dúvida básica ainda persiste e uma resposta deve ser dada ao povo brasileiro: deve ou não o Estado Nacional oferecer assistência médica às milhares de mulheres que, com medo da repressão, optam por métodos abortivos clandestinos, morrendo aos montes todos os anos? Para os “defensores da vida”, as vidas dessas mulheres valem menos? Com a palavra, José Serra (que, por incrível que pareça, foi Ministro de Estado da Saúde) e os seus aliados da Tradição, Família e Propriedade. Anauê!

¹ SAGAN, C. Aborto: é possível ser “Pró-Vida” e “Pró-Escolha”?. In: Bilhões e bilhões. Companhia das Letras. Pp. 195-213. 2009.



* Engenheiro agrônomo, mestre em Entomologia e doutorando em Genética. Professor do Instituto Federal do Amazonas (IFAM).

 

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