sábado, 26 de fevereiro de 2011

Salinhas de tortura nos supermercados imitam práticas da ditadura

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Em uma decisão inédita, no início deste mês, a Polícia de São Paulo indiciou seis seguranças da rede de supermercados Carrefour pelo crime de tortura motivada por preconceito racial. Eles agrediram o vigilante Januário Alves de Santana, em agosto de 2009, apontado como suspeito de roubar o próprio carro no estacionamento de uma das lojas em Osasco, na Grande São Paulo.

Também em Osasco, a dona de casa Clécia Maria da Silva, de 56 anos, foi parar no hospital depois de ter sido acusada de furto por seguranças da rede Walmart. Ela havia pagado pelas mercadorias, assim como um garoto de 10 anos, que foi ameaçado com um estilete por um segurança do supermercado Extra – que pertence ao grupo Pão de Açúcar. As ameaças ocorreram em uma salinha nos fundos da loja. Em ambos os casos, as vítimas eram negras.

Carrefour, Walmart e Pão de Açúcar são as três maiores redes de supermercados que atuam no Brasil. Juntas, elas lucraram R$ 71,5 bilhões em 2009. Em entrevista à Radioagência NP, o advogado Dojival Vieira, que acompanha os casos citados, revela os métodos utilizados pelos agentes de segurança dessas empresas para proteger tamanho patrimônio. Entre outras revelações, ele relata as agressões e humilhações que ocorrem nas chamadas “salinhas de tortura”, para onde são levados os acusados de furto.

Radioagência NP: Os agressores do vigilante Januário foram indiciados por tortura. Qual a importância dessa decisão?

Dojival Vieira: É a primeira vez na história do Brasil que há um enquadramento, um indiciamento, no crime de tortura motivada por discriminação racial. Ou seja, a aplicação da Lei 9455/97 de forma exemplar. É uma decisão histórica, importante, ainda que, obviamente, seja apenas o começo, já que a partir do indiciamento, da conclusão do inquérito, ele será remetido ao Ministério Público. Caberá ao MP oferecer a denúncia e a Justiça aceitá-la, instaurar o processo, passar os indiciados a réus e condená-los de acordo com a lei.

RNP: Que argumentos você utilizou para pedir ao delegado que o crime fosse enquadrado como tortura?

DV: Um homem que é suspeito do roubo do próprio carro, que é perseguido, que tenta se evadir para escapar com vida. É dominado, levado a um canto e torturado durante quase 30 minutos com socos, pontapés, tentativa de esganadura, que inclusive lhe provocaram fratura no maxilar, que provocaram a destruição da sua prótese dentária. Não se pode, obviamente, imaginar que isso seja lesão corporal leve.

RNP: O que acontece nas chamadas salinhas para onde são levados os suspeitos?

DV: São espécies de salinhas de castigo, ou salinhas de tortura, em que seguranças despreparados, sem qualquer capacitação e importando essa cultura truculenta e autoritária, do “prende e arrebenta” do período militar, se autorizam, se sentem à vontade para assumir o papel que eles efetivamente não têm. Que é o papel de fazedores de justiça com suas próprias mãos.

RNP: Eles acabam exercendo um papel de Polícia?

DV: Não é só eles que não podem fazer isso. A Polícia também não tem autoridade, em um estado democrático de direito, para bater agredir nem praticar violência contra ninguém.

RNP: O que se pode fazer para acabar com esses abusos?

DV: O Ministério da Justiça precisa fazer um acompanhamento mais amiúde, mais frequente, das atividades dessas empresas. Inclusive, o que se sabe, é que essas empresas de segurança têm mais homens trabalhando armados do que o contingente das Forças Armadas. Então, é uma situação de segurança pública, inclusive. O mercado em que operam as empresas de segurança, que é extremamente lucrativo, não pode operar de acordo com suas próprias leis.

RNP: Por que tanta truculência?

DV: Essas empresas transportaram para as relações de consumo práticas que não são próprias da democracia, não são compatíveis com o estado democrático de direito. E as empresas que as contratam – os supermercados e shoppings – não tiveram até agora a preocupação de investir no treinamento e na capacitação desses funcionários.

RNP: Que critérios definem um suspeito?

DV: No Brasil, por conta da herança de quase 400 anos de escravidão e de mais 122 anos de racismo pós-abolição, o negro é o suspeito padrão. Frequentemente, quase cotidianamente, as pessoas que são alvo dessas violências, dessas humilhações, desses constrangimentos, desses vexames, são pessoas negras de todas as idades.

RNP: Isso ocorre inclusive com crianças.

DV: Eu, particularmente, tenho acompanhado alguns desses casos e o último deles envolve uma criança de dez anos, que ao se dirigir ao supermercado Extra, da Marginal Tietê, na cidade de São Paulo, após passar no caixa e pagar normalmente as mercadorias que pegou ­– biscoitos, salgados, refrigerantes – foi abordado por seguranças, levado a um quartinho e obrigado a se despir sob a ameaça de chicotes, de agressão.

De São Paulo, da Radioagência NP, Jorge Américo.

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