segunda-feira, 30 de abril de 2012

"Se fica difícil identificar quem é negro, chame a PM! Os policiais sabem..."

 

As cotas e a histórica decisão civilizatória do STF

 

A decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) que aprovou o sistema de cotas raciais representa um enorme, e histórico, passo civilizatório em nosso país. Ela teve a aprovação de dez dos onze juízes que compõem o STF, já que ministro Antônio Dias Tofolli se considerou impedido de fazê-lo por ter defendido as cotas quando foi advogado geral da União no governo Lula.

Com ela, caem por terra, no campo jurídico, os argumentos conservadores que pretendiam condenar o sistema. Eles foram apresentados ao STF pelo DEM na ADIN 186 em 2009 contra a aplicação desse sistema na Universidade de Brasília (UnB), que o adotou pioneiramente desde 2004, beneficiando desde então 5.000 alunos que, de outra maneira, teriam dificuldades quase insuperáveis para ter acesso à universidade.

Há uma enorme distância, igualmente civilizatória, entre a decisão do STF e a manifestação contrária registrada pela mídia conservadora, exemplificada no editorial da Folha de S. Paulo do dia 27, cujo título já ilustra esta opinião anacrônica: “Cotas raciais, um erro”.

O argumento da Folha de S. Paulo repete a alegação ultrapassada da advogada do DEM na ADIN, Roberta Kauffman; para ela o sistema de cotas impõe um “modelo de Estado racializado” que implica, em seu ponto de vista, numa forma de racismo, com o risco de "dividirmos o Brasil racialmente".

Dentro do mais antiquado perfil conservador, o jornal da rua Barão de Limeira argumenta que uma política compensatória favorável aos negros não tem sentido num país onde, como o Brasil, houve intenso processo de miscigenação que diluiu as diferenças étnicas nas diferenças sociais. Trata-se, alega, de política importada dos EUA que afronta o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei.

Além de inexata (a política de cotas foi inaugurada na Índia, depois da independência em 1947, para beneficiar os dalits e outros segmentos sociais discriminados) esta argumentação oculta a antiga esperteza da elite brasileira de apoiar-se em princípios legais “igualitários” para defender velhos privilégios. Esse hábito tergiversador vem desde o Império, cuja Constituição nem sequer citava a existência de escravos no país; a propriedade de seres humanos era legalizada pela Consolidação das Leis Civis, de 1858, onde os escravos eram relacionados entre “os bens” protegidos pela lei.

A argumentação pela igualdade de todos perante a lei defendida pelos conservadores, pelo DEM e pela Folha de S. Paulo, filia-se longinquamente a um formalismo jurídico semelhante que atribui ao registro legal e constitucional a capacidade mágica de mudar a vida real e realizar a igualdade apenas com papel e tinta, e não com ações concretas.

A lição deixada pelo conjunto do STF desmente esta ilusão histórica e oportunista, e vários ministros manifestaram-se nesse sentido. Carlos Ayres Britto, por exemplo, reconheceu que o “preconceito é histórico” e que suas vítimas estão em situação de enorme desvantagem; a ministra Carmen Lúcia pensa que, mesmo não sendo a melhor opção (o melhor seria “ter uma sociedade na qual todo mundo seja livre para ser o que quiser”), o sistema de cotas é “uma necessidade em uma sociedade onde isso não aconteceu naturalmente”; o ministro Joaquim Barbosa que, pela cor da pele deve conhecer o preconceito de perto, defendeu o sistema de cotas justamente (contrariando o que pensam os conservadores) por ser um instrumento que permite “a concretização do princípio constitucional da igualdade material e a neutralização dos efeitos perversos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem”, para combater uma discriminação que, de tão enraizada na sociedade, “as pessoas não a percebem”.

Outro argumento conservador renitente diz que, no Brasil – dada a miscigenação – não é possível dizer quem é negro e quem não é. Esta é outra tergiversação: a questão não é biológica e a ciência ensina, há décadas, não existirem raças humanas. Portanto a questão é social e histórica e, no Brasil, “raça” é sinalizada pela cor da pele e pela aparência pessoal. É negro aquele que tem pele escura e traços herdados dos antepassados africanos (formato do nariz, dos lábios, do cabelo, do crânio, etc.). E também política: é negro aquele que se declara negro. Mas, como dizem os fãs do hip-hop, se fica difícil identificar quem é negro, chame a PM! Os policiais sabem...

O passo civilizatório de ontem, no STF, precisa ainda ser confirmado em outros julgamentos que estão na pauta daquela corte. Há três ações contra as cotas; duas envolvem a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e outra contesta o Programa Universidade para Todos (ProUni). A decisão unânime que jogou no lixo a ADIN 186 do DEM permite a certeza de que elas terão o mesmo caminho e serão rechaçadas na mais alta corte constitucional do país.

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