quarta-feira, 2 de maio de 2012

Água, Dilma!

Jaime Sautchuk *

 

Mais uma vez, em 512 anos, tem gente querendo contemporizar com o latifúndio. Antigo ou modernoso, esse modelo na atividade agropecuária é a maior praga do campo no Brasil, eterno símbolo do atraso econômico e social, por mais que apresente resultados em cifrões, pois está descolada dos anseios e necessidades do povo.


O novo Código Florestal, aprovado aos trancos e barrancos pelo Congresso Nacional e no aguardo de sanção (ou veto) da presidente Dilma Rousseff, trata, em verdade, da questão da água. Começa por deletar pendências do passado e aponta para um futuro tenebroso.

A chamada bancada ruralista da Câmara fez passar Código que, além de difuso e cheio de lacunas, anistia produtores que já vinham violando as normas que protegem os cursos d’água a céu aberto e os lençóis subterrâneos. E fixa normas genéricas sobre conservação e uso dos recursos hídricos nacionais para o futuro.

Vale aqui um parênteses sobre a tal bancada ruralista. Trata-se de um grupo ideológico, conservador ao extremo. Um de seus principais idealizadores e líderes é o deputado goiano Ronaldo Caiado(DEM), cujo currículo diz tudo. Ele é médico e estudou na França desde o ensino médio. Atuou na política estudantil de lá, no partido ultradireitista Frente Nacional, da família Le Pen.

No caso do Código, o grupo engambelou representantes de pequenos agricultores, com o argumento de que esses é que seriam os maiores prejudicados. E muitos desses desavisados, mesmo sendo da base do governo, viraram ruralistas de ocasião e engrossaram os votos em prol de um Código pró-latifúndio, como é o aprovado.

O pequeno proprietário, em geral, cuida melhor da água do que o grande. Eu tiro pelo meu avô, que há um século foi assentado em lote da reforma agrária que decorreu da Guerra do Contestado, em Santa Catarina. Ele trabalhava na ferrovia São Paulo-Rio Grande, que gerou a guerra, e se estabeleceu em gleba de 28ha. Até morrer, criou 14 filhos e manteve 8ha como reserva para proteger nascentes.
Já o grande proprietário, com o uso da irrigação por pivôs-centrais, gera um enorme desperdício de águas públicas, provocando erosão e matando cursos de água, nascentes e veredas. Os conflitos no campo que mais afetam o Brasil, hoje, já são pelo controle de águas. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), de 2009 para 2010 esse tipo de conflito cresceu em 93,3% em um ano.

E muitos casos o conflito se dá por barramento de córregos para fins diversos, em especial para irrigação. É comum um irrigante secar ribeirões que passariam por propriedades à jusante. Para quem não sabe, um único pivô, com haste de 250m, pode movimentar água suficiente para abastecer uma cidade com 5.000 habitantes.

Para se ter uma ideia da dimensão da encrenca, em apenas um município de Goiás, que é Cristalina, há mais de 800 pivôs instalados. Um agricultor dali usava uma bonita queda d’água, com uns 20m de descaída, como atrativo turístico, para fazer uma renda a mais. Só que, nos períodos de seca, em que há maior frequência de visitantes, a queda não existe. A água fica no pivô do vizinho rio acima.
Na atividade propriamente agropecuária, o problema é o mesmo. Nos últimos dez anos, por exemplo, no vale do rio Corrente, afluente do São Francisco, na Bahia, mais de 20 córregos secaram em definitivo. O assoreamento provocado pela irrigação por pivôs e as barragens feitas em veredas, onde estão as nascentes, acabam com o córrego.

A geofísica muda de região para região, onde o próprio manejo da água requer técnicas diferenciadas, mas isto é ignorado pelo Código proposto. O documento fala de algumas diferenças na área a ser preservada nas margens dos cursos entre Amazônia, Sudeste e coisas assim. Mas não vai fundo na questão, deixando de fora biomas fundamentais como a Caatinga e o Cerrado.

O Cerrado, aliás, que hoje ainda cobre o Planalto Central brasileiro, passa por um processo desesperador. Os rios da região são formadores das principais bacias hidrográficas do país (São Francisco, Paraná/Prata, Araguaia/Tocantins e Amazonas). No topo do planalto, eles parecem pequenos e desimportantes. Mas são eles que, aos milhares, formam volume para abastecer o sistema todo.
No mundo inteiro, a água ganha mais e mais importância e gera conflitos. Israel tomou conta das Colinas de Golan, por exemplo, para controlar o rio Jordão. Na Ásia, Europa, Américas, em todo canto há mais e mais disputas em torno da água.

O Brasil, que detém o maior volume de água doce do mundo, tem sérios problemas inclusive com o suprimento de sua população. E não apenas no Nordeste, onde o caso é crônico, mas em todas as regiões. Pesquisa encomendada pelo governo federal revela que menos de 5% da água de que dispomos presta para uso humano.

E agora vêm os latifundiários, que nunca deram a mínima para o futuro do país, tentar passar goela abaixo da nação um Código Florestal que, além de ajudar a perenizar as injustiças sociais, ainda ameaça a água de que ainda dispomos.

Por isso, o movimento “Veta, Dilma!”, que ganha corpo no país inteiro, quer dizer que o Brasil está, em verdade, pedindo água.

 

* Trabalhou nos principais órgãos da imprensa, Estado de SP, Globo, Folha de S.Paulo e Veja. E na imprensa de resistência, Opinião e Movimento. Atuou na BBC de Londres, dirigiu duas emissoras da RBS.

 

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