É oportuno lembrar a  contundente frase dita por Luiz Gushiken em sua carta dirigida ao presidente  Lula, em 16/11/2006, no momento em que se despedia do governo: “Na  voragem das denúncias, abalou-se um dos pilares do Estado de Direito, o da  presunção de inocência, uma vez que a mera acusação foi transformada no  equivalente à prova de culpa”.
  
  
  
  Washington Araújo, na Carta Maior
  No cipoal de delitos, ilicitudes e crimes sob julgamento no Supremo  Tribunal Federal, objeto da Ação Penal 470 – afetivamente distinguida  pela imprensa como mensalão –, a sua maior parte não resiste a uma  simples busca por provas e evidências que façam jus ao estardalhaço com que o  assunto vem manipulando corações e mentes, e despertando paixões claramente  partidárias nos meios de comunicação.
  
  Mas existe outra selva de ilegalidades pairando como sombra sobre esta AP-470:  a forma escancarada com que pessoas de reputação bem abaixo do meio-fio recebem  aura de credibilidade inconteste, seja na condição de delator, seja na de  testemunha em sua dupla função de réu de crime confesso. Essa credibilidade  recebe a moldura vistosa de uma imprensa que há muito deixou de se pautar pelos  requisitos basilares do bom jornalismo – aquele que busca a verdade, que  persegue os fatos, que é incansável em ouvir os vários lados envolvidos e que  se abstém de exarar julgamento de valor antes que o tema investigado tenha  reunido os elementos básicos que respondam de forma inequívoca a questões tão  simples e essenciais à nossa atividade quanto: Quem? Onde? Quando? O quê? Por  quê? Como? Quanto?
  
  Caixa dois
  
  Chega a ser irônico, não fosse gravíssimo do ponto de vista moral e ético, que  a grande imprensa que insiste em meter os pés pelas mãos em sua sua incontida  pretensão de trocar a função de jornalista pela de magistrado, mudando como em  passe de mágica as mangas de camisa por pomposas togas, é a mesma imprensa que  usa todos os meios ao seu dispor – e não são poucos, desde plantação de  notas contendo ameaças de demolição de reputações até o prenúncio de nova  avalancha de infundados escândalos – para evitar que jornalistas de  revistas semanais como Veja (Grupo Abril) e Época (Grupo Globo) venham a depor  na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga as nebulosas  transações financeiras, escutas ilegais, aliciamento de parlamentares do  Congresso Nacional, empresários de alto coturno e, também, o uso de informações  obtidas – de forma criminosa, via escutas telefônicas – para  abastecer noticiário apocalíptico com o intuito não menos criminoso de  desestabilizar o governo de um país.
  
  É a velha história se renovando: investigação boa é a que atinge os outros, que  lhes macula a honra, expõe-lhe as vísceras na pedra dos mercados públicos,  imputam-lhes crimes imaginários que causam repulsa à sociedade; e a  investigação que não pode nunca existir é a que trata das relações ilícitas  entre jornalistas e proprietários de seus abonados veículos de comunicação com  o submundo do crime, tão próprios para regimes de exceção, para tempos  ditatoriais, funcionando como vasos comunicantes de interesses sórdidos  travestidos de informação. Nesse aspecto, o julgamento da AP-470 não passa de  mero instrumento burocrático requerido pela grande mídia para dar validação às  suas muitas teses de condenação às dezenas de réus indiciados em processo  movido pelo Ministério Público da União.
  
  Onde as provas? Ao longo de cinco longas horas o procurador-geral da República  Roberto Gurgel, no dia 3 de agosto, leu calhamaço em que há excesso de juízos  de valor e completa ausência de fatos probatórios. Na melhor das hipóteses, os  depoimentos por ele pinçados com mãos de cirurgião plástico dentre as 50.506  páginas dessa Ação Penal recebem peso completamente indevido – o de prova  material, violentando as mais rudimentares lições de Direito que aprendemos  ainda nos primeiros meses de universidade.
  
  Perguntam as pessoas que acompanham o julgamento, movidas pela curiosidade que  somente tema com tão ampla repercussão midiática poderia suscitar: onde as  provas? A vasta maioria dos depoimentos, colhidos às centenas nos autos da  AP-470, são praticamente unânimes em desmentir, não confirmar, desacreditar por  completo as teses da existência de crimes como formação de quadrilha, peculato,  lavagem de dinheiro e compra de votos de parlamentares de forma regular e  sistemática para atender a interesses políticos do governo federal com os  parlamentares da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Muito ao contrário,  os defensores dos réus referenciam essa enxurrada de depoimentos como robustas  defesas dos seus clientes e, no máximo, encontramos a assunção de um crime  quase comum a todos os partidos a que estão afiliados muitos dos réus: a  prática do caixa dois durante a campanha presidencial de 2002.
  
  Sem provas
  
  Antes mesmo de se encerrar o julgamento do século, segundo querem fazer crer os  órgãos de comunicação, encontramos o pisoteamento da justiça com requintes de  crueldade, tortura sistemática, midiática e psicológica, movida contra, ao  menos, uma pessoa inteiramente inocente. Tenho em mente a figura honrada e  sempre altiva de Luiz Gushiken. O que o Ministério Público da União fez contra  Luiz Gushiken é, por si só, um grave caso de má-fé mancomunado com injustiça  patente. O que a grande imprensa fez com Luiz Gushiken é suficiente para  escrever uma das páginas mais vis de nossa história recente: o ataque, o ataque  sem provas, o ataque sem provas nem evidências plausíveis contra alguém que só  teve um crime. O crime de ajudar o Brasil deixar para trás um longo passado de  obscuridade e atraso civilizatório, de imensa disparidade entre poucos ricos e  muitos pobres, e que ousou, bem além de nosso tempo, distinguir que a primeira  etapa de qualquer governo popular não poderia ser outra que a de reconstruir a  autoestima do povo.
  
  Sim, a vítima do duplo massacre MP-mídia é mentor e patrono da mais importante  campanha de publicidade institucional jamais ocorrida no Brasil –  “O orgulho de ser brasileiro”, “O melhor do Brasil é o  Brasil”, “Sou brasileiro e não desisto nunca”.
  
  Luiz Gushiken demonstrou como ninguém, e ao longo de sete longuíssimos anos,  tempo em que – vítima de terrível doença – sempre travou batalhas  diárias por sua vida, que tem orgulho de ser brasileiro, que é um brasileiro  talhado para não desistir nunca. Porque Gushiken há muito aprendeu com o  pensador Shoghi Effendi (1897-1957) que “o maior tesouro de uma nação é o  seu povo”. Portanto, o melhor do Brasil não são suas imensas fontes de  recursos naturais, rios e florestas, imensa extensão territorial, petróleo  abundante na camada do pré-sal. O melhor mesmo é o brasileiro.
  
  Antes que os refletores deixem de buscar biografias dignas de serem iluminadas  no episódio do mensalão, é necessário trazer a lume a “situação kafkiana  processual” em que Gushiken foi engolfado. A começar pelo início, deve se  destacar que a denúncia contra Gushiken foi recebida com votação apertada:  quatro ministros da Suprema Corte – Celso de Mello, Gilmar Mendes,  Ricardo Lewandowski e Eros Grau – votaram no sentido de sua rejeição.  Dentre os que votaram favoráveis à recepção da denúncia, ficou patente que não  havia elementos mínimos a embasar a condenação. E é de ninguém menos que do  próprio ministro relator Joaquim Barbosa o entendimento de que, à luz dos  elementos constantes dos autos, “absolveria Luiz Gushiken, sem  dúvida”.
  
  Sob a claridade desses primeiros raios de luz incidindo sobre o ambiente de  penumbra em que nasceu a AP-470, é importante destacar qual acusação pesava  sobre Gushiken: teria ele, pretensamente, ordenado ao também réu desta Henrique  Pizzolato que assinasse quatro notas que permitiram o adiantamento de recursos  da empresa Visanet, ligada ao Banco do Brasil, para a agência de publicidade de  propriedade de Marcos Valério, a DNA Propaganda Ltda.
  
  Recebida a denúncia, de forma tão apertada, passou-se à fase seguinte – a  que busca, demonstra e apresenta as provas que sustentem a denúncia. Nesse  aspecto o assunto chega a ser constrangedor: tudo condiz para a total  improcedência da ação penal contra Luiz Gushiken. Isso porque o próprio  Ministério Público não requereu a produção de uma única prova que pudesse  robustecer seu pleito condenatório. E também não arrolou uma única testemunha  que trouxesse alguma substância, algum resquício de veracidade à destrambelhada  acusação.
  
  Ato de desumanidade
  
  Não estamos aqui às voltas com um processo com características dignas do  talento de Franz Kafka, autor dos consagrados O Processo e O Castelo? Mas o  assunto está longe de se exaurir. É que sobressaem atitudes bastante  questionáveis por parte do Ministério Público quanto aos fatos e reveladoras da  improcedência da ação penal, contra Gushiken. Uma destas é o fato de o titular  do MP optar por subtrair ao conhecimento dos réus e dos ministros que compõem o  Supremo Tribunal Federal o teor de laudo do Instituto de Criminalística  produzido antes da sessão de julgamento que recebeu a denúncia, que cuidava do  tema e se afigurava mais que suficiente para afastar quaisquer indícios de  coautoria por parte de Gushiken.
  
  Esse laudo assumiu ares de clareza e transparência uma vez que nomeava quem  eram os responsáveis, no Banco do Brasil, pela gestão dos recursos da empresa  Visanet – e entre eles sequer estava o réu Henrique Pizzolato; E, não  estando este, restava evidente ser absolutamente fantasiosa, além de claramente  mentirosa, a afirmação de Pizzolato de que recebera orientação de Gushiken para  que agisse em benefício da agência de publicidade de Marcos Valério.
  
  Neste instante, qualquer concretude capaz de manter de pé a aviltante denúncia  do Ministério Público ruía por terra, deixando, no entanto, graves sequelas na  honorabilidade um inocente: “Como devolver ao travesseiro todas as penas  lançadas aos ventos da calúnia e da difamação?” E não precisava ser assim.  Sim, porque se o então Procurador Geral da República Antonio Fernando de Souza  não houvesse ocultado do STF (e dos réus) o referido laudo do Instituto de  Criminalística, dificilmente a Suprema Corte teria atuado pelo recebimento da  denúncia, uma vez que já existiam eloquentes elementos para sua imediata  rejeição.
  
  Triste o país em que a administração da justiça é tratada de forma no mínimo  leviana e arbitrária: é fato que após a apresentação da defesa pelos réus, o  procurador-geral da República argumentou – em resposta à defesa que  revelou estranheza diante do fato de ter sido Luiz Gushiken denunciado –  que os fatos estariam sendo “apurados” pelo Ministério Público. No  entanto, não tardou muito para o cidadão comum ficar ciente que nos autos da  AP-470 não havia quaisquer traços, indícios, pontos ou vírgulas dando conta dos  resultados dessa “apuração”. Mas, para o réu injustamente acusado,  era como se séculos houvessem transcorrido. Porque para o inocente, cada dia a  mais em que sua honra deixa de ser restabelecida ela é reiteradamente  pisoteada. Essa forma de agir do Ministério Público da União é, antes de tudo,  um flagrante ato de desumanidade, pois transformou o próprio processo em sua  cruel punição.
  
  Aos leitores que conhecem os meandros da administração da justiça, resta  concluso que o MP se absteve de buscar uma única prova voltada à condenação de  Gushiken – nem antes de propor a ação, nem depois de recebida a denúncia.  E, tanto tempo decorrido, tanto sofrimento vivido, ficamos sabendo que o atual  procurador-geral da República proclamou expressamente que não haveria provas  sequer indiciárias em desfavor de Gushiken.
  
  Tentação maior
  
  E quanto à imprensa? Florestas de papel foram consumidas para atear fogo na  reputação de uma pessoa inocente. Colunistas se revezavam em proferir sumárias  condenações; responsáveis nos jornais pelos quadros “Entenda o caso...  como nós o entendemos” devem ter se cansado de destacar seu nome dentre  os “delinquentes que tanto mal causaram ao país” e de repetir pela  milésima vez a foto desse senhor de estatura mediana e olhos puxados que, com  humildade e percepção da real condição humana, nos ensinou que não pode existir  virtude mais amada e necessária nos dias em que vivemos do que a luz que  irradia do sol da justiça.
  
  É oportuno lembrar a contundente frase dita por Luiz Gushiken em sua carta  dirigida ao presidente Lula, em 16/11/2006, no momento em que se despedia do  governo: “Na voragem das denúncias, abalou-se um dos pilares do Estado de  Direito, o da presunção de inocência, uma vez que a mera acusação foi  transformada no equivalente à prova de culpa”.
  
  Se no ora distante 2006 essas palavras, impulsionadas por genuína indignação  contra o mau jornalismo, não passavam de longo e solitário grito no deserto,  agora, em 2012, elas assumem ares de profecia cumprida. O próprio processo foi  a punição. E, para uma imprensa ávida de sangue e sempre disposta a terçar  armas para manter em evidência seu escândalo da hora, não restou nem a  obrigação ética de formular ao “condenado inocente” um reles pedido  de desculpas. O mau jornalismo principia na confusão mental entre liberdade de  expressão e libertinagem de imprensa, e não resiste à tentação maior de vestir  a toga e, a seu bel-prazer, acusar, julgar, condenar.
  
  Não passam, na verdade, de semiprofissionais do jornalismo. Infames, biltres e,  em uma palavra, mequetrefes.
  
  *Washington Araújo é jornalista e escritor. Mestre em Comunicação pela
  UNB, tem livros sobre mídia, direitos humanos e ética publicados no Brasil,
  Argentina, Espanha, México. 
  
  Fonte: Carta Capital (Artigo publicado originalmente no Observatório da  Imprensa)
 
 
 
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