sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Novela da tarde

2012 se esvai com travo de lembrança do longínquo passado. Até o século 19, quando rico roubava, fazia-se como hoje: dava-se um jeito (consulte A Arte de Furtar, do Padre Antônio Vieira); se pobre, fosse branco ou negro, cadeia; e, até 1888, se negro escravizado, pelourinho: apanhava de chicote, à vista de todos. Até negro batia, como vemos na gravura de Debret. Tempos modernos, mudanças semânticas. Rico e político não roubam: praticam corrupção. Nem rouba o funcionário público: pratica peculato, concussão, desvio. Quando pegam cadeia, saem laguinho. Isso foi que foi até que, com esse negócio de democracia e povo votar, um operário vira presidente e sua grei faz o que tantos vinham fazendo. E agora? Pelourinho eletrônico neles.

 

Para maior escarmento, pespegam-lhes termo jocoso, mensaleiros, os acusados do Mensalão: gente do governo, para aprovar seus projetos, teria pago mensalidades a deputados, coisa de que não se obteve prova material. Mas, fato inédito nos 62 anos de história da tevê brasileira, o julgamento, na mais alta Corte, vira novela da tarde, tendo como astros e estrelas advogados, o procurador-geral, ministras e ministros da Corte. Dividem em capítulos a novela, que se desenrola num crescendo de emoções, em requinte que recende a crime eleitoral – não fui o único a farejar: a ong Movimento dos Sem Mídia acusou formalmente a principal rede de televisão desse crime por cobrir o julgamento em tom de propaganda.

 

O noticiário vinha sempre colado no fim do horário eleitoral obrigatório, como se dele fizesse parte. No último dia em que se podia veicular propaganda eleitoral, o principal telejornal da rede ainda dedicou 18 minutos para os “melhores momentos” da novela da tarde. Nos capítulos iniciais, ela havia julgado os chamados “mequetrefes”; depois, os réus do escalão médio; e reservaram, como pano de fundo da campanha do segundo turno das eleições, as emoções dos capítulos finais com o julgamento e a atribuição de penas para os “vilões” que denominaram de núcleo da “quadrilha”. Em dobradinha com a mídia, fez-se a novela coincidir todinha com a campanha eleitoral para prefeitos e vereadores.

 

O oportunismo ficou claro quando candidatos da oposição passaram a associar o Mensalão aos adversários da situação. Contavam levar o partido do ex-presidente e de sua sucessora, bem como os partidos de seus aliados, a fragorosas derrotas. Mas o povo não embarcou nessa. Como se o “julgamento do século” não passasse de uma “novela da tarde”, elegeu prefeitos à direita e à esquerda, com leve preferência para a esquerda, que avançou mais um pouco. E, de quebra, onde os comentaristas costumam chamar de “jóia da coroa”, a maior cidade do hemisfério sul e mais importante colégio eleitoral do país, deu a vitória ao partido dos “mensaleiros”. Diz o moderno refrão que “o povo não é bobo”.

 

 

Artigo Mylton Severiano Amancio Chiodi.

Mylton Severiano é jornalista e escritor.

myltonseveriano@gmail.com

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