Recentes pesquisas realizadas pelo instituto Datafolha, sobre
popularidade do governo federal e intenções de voto para 2014, assanham a
direita e tiram o ar de setores da esquerda. Os números parecem dizer, a
julgar por algumas manchetes e análises, que o país caminha para
encerrar o ciclo de reformas iniciado em 2003. Mas recomenda-se cautela
ao interpretar esses levantamentos, antes de bailar o carnaval ou
vestir-se de luto.
Por Breno Altman*, no Brasil 247
O fato mais relevante é a queda de popularidade da presidente Dilma. O índice de eleitores que consideravam sua administração ótima ou boa cravou os 65% no final de março, baixou para 57% no início de junho e despencou para 30% após a escalada de protestos. O número de seus eleitores potenciais acompanhou a curva: 58%, 51% e 30%.
A má notícia para petistas e aliados é inegável, pois saltou de banda praticamente metade do apoio e eleitorado da titular do Planalto. Cometerá sério erro, no entanto, quem enxergar isoladamente esse dado estatístico. Não apenas pela natureza fotográfica e momentânea de pesquisas, mas também por conta de outros registros disponíveis nas mesmas enquetes.
O primeiro deles é que o bloco de confiança, agregando a classificação regular aos julgamentos francamente positivos, deteriorou-se em ritmo mais baixo. Situava-se em 93% no pico, manteve-se no início de junho (90%) e caiu agora para 73%. Enquanto o grupo superior perdeu 53,85% de seus adeptos em três meses, a faixa que abarca também o nível intermediário foi reduzida em 21,50%.
Ou seja, apesar do tsunami político, a reversão nas avaliações não levou a uma maioria antagônica ao governo, ainda que haja riscos reais e imediatos. Os descolamentos atuais estão situados em um campo em disputa, no qual o governo e o PT podem encontrar audiência e recuperar terreno.
Esta mesma tendência se aplica à intenção de votos em Dilma. No cenário mais provável para 2014, com quatro candidatos (a atual presidente, Marina Silva, Aécio Neves e Eduardo Campos), a petista perdeu 21 pontos em relação à última pesquisa, mas 12 desses pontos migraram para o grupo de votos indefinidos, brancos ou nulos. Os candidatos de oposição cresceram, é fato, mas absorvendo menos da metade do que Dilma perdeu.
Trata-se de ponto relevante que a chefe da Rede tenha sido a candidata mais beneficiada, crescendo de 16 para 23% — enquanto o representante tucano ganhou somente três pontos (de 14 para 17%) e o governador pernambucano praticamente patina na mesma posição (foi de 6 para 7%). Marina Silva, afinal, é desaguadouro natural e instável para eleitores desgostosos com o PT que não pretendem migrar para a direita.
Mesmo quando Joaquim Barbosa entra na parada, o quadro não muda de forma expressiva, ainda que promova relativa desidratação dos demais candidatos contra o oficialismo (Marina baixa a 19%, Aécio a 14% e Campos a 4%). A soma dos candidatos oposicionistas sobe de 47 para 53%, com o segmento de indefinidos, brancos e nulos descendo de 24 para 19%, enquanto Dilma fica praticamente na mesma, caindo de 30 para 29%.
Deve-se ressaltar que momentos de politização da sociedade alteram a lógica de alinhamento do eleitorado. Quando o cenário do país desenvolve-se sem solavancos, é comum haver certa simpatia administrativa até de quem não votou e sequer votaria no partido de plantão. Mas quando há clima de polarização, a tendência de confluência entre apoios e opção ideológica se afirma.
Os 30% de Dilma nas pesquisas representam o núcleo duro do eleitorado petista e de esquerda, contra outros tantos (simpáticos a Aécio e, em parte, a Marina ou Joaquim Barbosa) que são fiéis do conservadorismo, enquanto os setores oscilantes representam ao redor de 40% dos eleitores. Não houve, a julgar pelo Datafolha, significativo crescimento da direita, mas perda importante de gordura governista a favor da zona nebulosa na qual estão tanto votos indecisos, nulos e brancos quanto candidatos que exibem perfil alternativo aos partidos tradicionais.
O segundo tema de relevo está no desempenho do ex-presidente Lula caso fosse candidato em 2014. Alcança 45% das preferências, contra 43% de todos adversários somados (Marina faria 14%, Barbosa bateria em 13%, Aécio não ultrapassaria 12% e Campos estacionaria em 4%). Também recuam indecisos, nulos e brancos, para 13%. Apesar da queda de 10% em relação à última pesquisa, o desempenho do líder petista revela importantes reservas de força a favor da esquerda.
Esta performance também confirma que as características dos protestos no Brasil são bastante distintas de seus congêneres europeus ou árabes. A memória majoritária sobre os dez anos de governo progressista é positiva, especialmente entre os pobres da cidade e do campo, e profundamente identificada com o ex-presidente. O país viveu ciclo de melhoria paulatina da economia e das condições de vida e renda entre as camadas populares, que mantém sua lealdade ao projeto liderado pelo PT.
Os sucessos deste processo, associados a suas limitações, trouxeram novas contradições, e esse é um terceiro elemento central de análise. O desemprego é o principal problema nacional para apenas 4% dos entrevistados pelo Datafolha, por exemplo. Baixos salários sequer constam das inquietações principais. Tampouco inflação. Mas a oferta dos principais serviços públicos deixa 71% dos brasileiros insatisfeitos – 48% reclamam da saúde, 13% da educação e 10% da segurança, em respostas únicas e espontâneas.
Pode-se concluir que a ascensão socioeconômica retirou algumas dezenas de milhões da plataforma de reivindicações para a sobrevivência e os colocou no rumo de exigências por melhor qualidade de vida, fenômeno que rebate diretamente no desempenho do poder público. Há perda paulatina na confiança de que essas demandas possam ser atendidas por um sistema político que parece contaminado por interesses corporativos e privatistas.
O aumento no preço das tarifas de transporte público e o custo das obras destinadas à Copa, potencializados pela repressão policial nos estados, aparecem como gatilhos para a conversão desta insatisfação em mobilização, que abraça temas concretos e conflui como questionamento generalizado ao arcabouço institucional construído pela transição conservadora à democracia.
O PT acumulou forças fora deste sistema, como seu crítico mais duro e contumaz, ainda que tenha sempre operado pelas regras constitucionalmente vigentes. Ao conquistar o governo, em minoria parlamentar, seus dirigentes consideraram que não havia forças para mudar essas instituições e conduziram reformas em seu âmbito. A explosão da crise de junho, nessas circunstâncias, atinge o partido e o conjunto da esquerda como integrantes de um edifício político corroído por cupins famintos, na percepção das ruas.
Por fim, um quarto componente das pesquisas convalida o tipo que crise que o país atravessa: 68% dos entrevistados apoiam o plebiscito para reforma política e 73% seriam favoráveis à convocação de uma constituinte (o que eventualmente revela recuo precipitado do governo sobre esse tema). Ao contrário do que manifestam correntes de direita, dentro e fora das legendas oposicionistas, a maioria dos eleitores aplaude uma solução política de grande amplitude para os dilemas atuais.
Esta inclinação do eleitorado talvez traga a chave de compreensão para a esquerda refazer sua estratégia e recuperar o terreno perdido. As ruas querem mais reformas e maior velocidade nas mudanças. Parte da cidadania, aquela de orientação progressista, condena o PT e seu governo por terem ficado parecidos demais, próximos demais, com os grupos econômicos e políticos que sempre combateram.
A resposta às mobilizações e aos resultados das pesquisas não parece ser uma questão técnica, de gestão, mas um rumo político. Uma nova agenda que aprofunde o processo iniciado em 2003, a começar pela radicalização da democracia. O confronto de programas, o reforço da identidade de esquerda e a defesa abnegada dos interesses populares contra a plutocracia podem ser o melhor caminho de reencontro com a base social momentaneamente perdida.
Uma visão tradicionalista, de que os 40% perambulando entre o PT e a oposição de direita constituem um "centro", a ser disputado com maior eficácia administrativa (ainda que necessária) e mais moderação tanto na política quanto na economia, tem boas chances de ser desastroso tiro no pé.
* Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi e da revista Samuel
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