quarta-feira, 10 de agosto de 2005

AOS AINDA PETISTAS

ANTONIO OZAÍ DA SILVA*


Houve um tempo, não muito distante, que nos orgulhávamos do partido e do epíteto de petista. Se para nossos opositores o petismo tinha uma conotação negativa, identificada a um radicalismo considerado inconseqüente, para nós o próprio termo radical indicava que éramos diferentes.

Havia mesmo uma certa arrogância da nossa parte em relação à história e aos demais partidos da esquerda brasileira. Em nossa ignorância, nos imaginávamos os fundadores de um novo tempo. E se nos voltávamos ao passado era muito mais para identificarmos os erros dos companheiros de outras gerações vinculadas à tradição marxista-leninista, em especial o partidão.

Eles fracassaram, foram derrotados em 1964 e na luta armada contra a ditadura militar. Suas teses políticas reformistas e a prática cupulista em relação ao movimento sindical e popular deveriam ser superados. Mas também falharam os críticos revolucionários, em sua análise da sociedade e estratégia de luta vanguardista.

Naquele período, os primeiros, os reformistas, eram identificados com o PCB, o PC do B e o MR-8; os segundos, os revolucionários, eram, em sua maioria, companheiros que se somaram aos esforços pela construção do PT. Era, é claro, uma divisão simplista que correspondia aos objetivos da luta política.

Mesmo os que optaram pelo PT eram vistos com desconfiança, acusados pelos dirigentes da Articulação de usarem duas camisas, em suma, de não serem petistas puros. Havia mesmo um certo ranço anticomunista contra os companheiros destas correntes. No fundo, eram vistos como aquelas companhias que somos obrigados a aceitar, mas que esperamos nos livrar delas na primeira oportunidade.

E, de fato, a Articulação, tendência majoritária auto-identificada com o que seria o petismo puro, soube manipular habilmente e contou com o apoio da base para promover expurgos e/ou enquadrá-los. Nesta caminhada, é claro, houve erros de parte a parte, mas também ocorreram conversões importantes. Se uns saíram, outros aderiram e passaram a compor a direção majoritária. Houve quem mudou tanto que de herege passou a ser defensor-mor da política da maioria dirigente e tornou-se confiável a ponto de ocupar os postos máximos da burocracia partidária.


Para além das contingências da luta política interna e dos equívocos cometidos, o fundamental é que, perante a sociedade, não tínhamos do que nos envergonharmos. Mesmo os críticos tendiam a reconhecer os valores que alicerçavam a militância; éramos identificados com a ética e com uma forma diferente de fazer política. Nos tornamos vítimas da auto-imagem que construímos e os problemas que apareciam aqui e acolá, às vezes envolvendo questões éticas, eram concebidos como acidentes de percurso.

Tínhamos a sensação de controlar a história, de sermos superiores aos que vieram antes de nós; tínhamos a arrogância própria dos que se imaginam representantes do bem e paladinos da moral. Agíamos, salvo exceções, como messiânicos! Para muitos de nós, a fé na divindade transcendental foi traduzida pela crença de que construíamos o paraíso na terra e o partido era o nosso instrumento.

Mas eis que aquele cujo nome é melhor não pronunciar – embora alguns o chamam de tinhoso, poder ou simplesmente dinheiro – corrompe os líderes e estes, ao caírem em tentação, maculam o partido e tudo o que significou durante todos estes anos ser petista. Ainda que não sejamos cúmplices destes anjos caídos, eles nos carregam para as profundezas do inferno dantesco. Assim, a militância petista da base também se vê maculada.

Jogam-lhes no rosto a culpa que não lhes cabem; lançam-lhes à face as denúncias amplificadas pelos meios de comunicação como se fossem eles os denunciados; culpam-lhes pela opção política-ideológica feita no passado, como se esta indicasse o pecado original; são vítimas da jocosidade, tratados como néscios e qualificados como trouxas.

E, quem sabe, talvez no íntimo até dêem razão aos críticos. É nestes momentos de crise que as dúvidas nos interpelam teimosamente. Nos questionamos sobre o que fizemos e também se não temos parcela de culpa nisso tudo. Como deixamos que atingisse este ponto? Para onde foi a nossa ética? E, acima de tudo, nos perguntamos se valeu a pena. A lama respinga por todos os lados e a maioria dos petistas, perplexos e envergonhados com o que ouvem e vêem, terminam também por serem cobrados pelos malfeitos dos dirigentes envolvidos com os escândalos e as denúncias. Em quem confiar? Como manter os sonhos e a esperança?

Talvez o mais grave da crise política e moral que ora vivenciamos seja a crise de confiança. Não me refiro à credibilidade dos políticos em geral. Não, os políticos, amados ou odiados, há muito convivem com a desconfiança da maioria da população. Eu me refiro, especificamente, aos homens e mulheres que assumiram-se militantes por um projeto político, reformistas para uns, revolucionário para outros, mas, de longe, um sonho a ser perseguido como uma certeza inexorável ou uma possibilidade histórica.

Eu me refiro aos homens e mulheres que, para além das vicissitudes humanas e inerentes à política institucional, alimentaram a esperança de fazerem a diferença; corações e mentes forjados no calor da luta contra a ditadura militar, pela democratização do país e contra a ordem social e política dominante; homens e mulheres que foram o sangue e o ar que alimentaram as artérias e oxigenaram o corpo político denominado Partido dos Trabalhadores. Eu me refiro a você, militante anônimo da base petista, que, a despeito de tudo, fixou a estrela em seu peito e acreditou no partido e nos seus líderes. Aludo ao demasiadamente humano, homens e mulheres prenhes de vícios e virtudes.

Só quem é – ou foi petista – pode compreender em sua plenitude o significado da crise de confiança. Só estes têm a exata dimensão dos sentimentos que atormentam a militância em estado de estupefação diante do que vê e ouve sobre os que se proclamavam seus líderes. Aqui, é preciso diferenciar dirigentes e dirigidos, direção e base; é preciso ainda diferenciar os diversos níveis hierárquicos das direções. É fato que o grosso da militância, desde o desmonte dos núcleos de base, perderam cada vez mais o poder de intervir nos rumos do partido.

Os quadros intermediários foram incorporados às estruturas de poder (partido, parlamento, executivo) e a militância da base que se manteve ativa foi aquela vinculada organicamente às tendências internas. Boa parte dos militantes dos primeiros tempos que não conseguiram se adaptar às lutas de tendências e nem se transformaram em funcionários-assessores, desligaram-se. Muitos recolheram-se à solidão da sua consciência, ao lar e à família.

Não obstante, a militância da base, ou o que ela representava, se transformou numa espécie de tesouro a ser resguardado enquanto ideal. Não é surpreendente, portanto, que o "apelo à militância" tenha sido o primeiro grito de guerra do outrora todo-poderoso chefe de gabinete, secundado pela direção petista que, naquele período, negava as denúncias pelo recurso da desqualificação do delator e a retórica do golpismo. Mas também é sintomático que o apelo a que os petistas tomassem a defesa do partido em suas mãos não surtiu o efeito esperado. A solução se deu por cima e burocraticamente. A direção caiu e foi substituída antes que o edifício que a sustentava ruísse. Os alicerces do edifício permanecem os mesmos, ainda que saiam determinados moradores e substitua-se o síndico.

Agora, é a esquerda do partido quem clama à militância pela reconstrução e/ou refundação do mesmo. É normal que se agarrem às perspectivas de tomarem o partido em suas mãos. Mas será possível a purificação e regeneração do partido? Na base, muitos já se convenceram de que o partido esgotou-se; outros se dão um prazo para permanecerem nele – até as eleições internas! Ainda que não concordemos com as posições de uns e outros, é preciso respeitá-los em sua dor e esforço de superação da crise. Acima de tudo, é necessário separar o joio do trigo. Os que caíram em tentação sabiam o que faziam; que não se culpe à maioria pepela insensatez de alguns.

ANTONIO OZAÍ DA SILVA
*Docente na Universidade Estadual de Maringá (UEM), membro do Núcleo de Estudos Sobre Ideologia e Lutas Sociais (NEILS – PUC/SP) e Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo

Nenhum comentário:

Marcadores