SERIE: CONVIDADO ESPECIAL
Renato Rovai* -
Editor da Revista Fórum
Fui à Venezuela duas vezes no último período. Ambas as visitas foram de aproximadamente quinze dias. A primeira foi na semana seguinte à tentativa de golpe. Estive lá com o fotógrafo Satoru Takaesu. Chegamos ao país com apenas um contato, o do secretário-geral do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Impresa, Gregório Salazar. Ele foi nosso guia. Gentil, prestativo e antichavista, nos apresentou tudo o que em sua opinião tornava a tentativa de golpe ao presidente de seu país, de certa forma, justificável.
Exatamente isso, um jornalista de postura solícita e que parecia de fato acreditar em valores democráticos defendia o movimento golpista. Apontava excessos por parte da turma de Pedro Carmona, o líder empresarial que fechou o Congresso, destituiu a Suprema Corte, rasgou a Constituição e durou 28 horas na presidência, mas entendia que aquelas posturas se justificavam, já que do outro lado estava Chávez.
A cobertura midiática dos últimos episódios que apontam para um suposto esquema de corrupção na formação da base do atual governo brasileiro está ganhando contornos muito semelhantes ao que ocorreu no país vizinho. Com uma sutileza: ela não é personalizada na figura do presidente da República, como no caso venezuelano, mas no seu partido político, o PT.
É fato que há uma denúncia que precisa ser apurada e do bom jornalismo espera-se uma investigação com base em entrevistas e reunião de documentos. Faz bem à democracia que a imprensa assim atue. É isso o que dela se espera.
Como se esperava também que assim fosse quando ocorreu o processo de privatização das telefônicas e de outras empresas públicas do país. Naquele momento, os escândalos não precisavam ser abafados pelo governo ou deputados governistas. O midiático poder brasileiro se encarregava disso. O falecido jornalista Aloysio Biondi, de forma quixotesca, tentava "destampar a panela", mas seus artigos, publicados duas vezes por semana na Folha de S. Paulo, não recebiam sequer chamada de primeira página.
Ao contrário, uma vez me confidenciou que quando recebeu convite para ir trabalhar no então Diário Popular, ganhando um pouco mais, mas tendo uma coluna diária, recebeu como contraproposta da Folha ganhar mais para escrever apenas uma única coluna semanal. Entendeu aquilo como um cala-boca e foi para o Diário.
Seu livro, o Brasil Privatizado, repleto de provas escandalosas, vendeu mais de 100 mil exemplares e mereceu apenas registros pontuais nos veículos. Não impulsionou nenhum movimento anti-PSDB nos veículos de comunicação.
É disso que se trata. Anuncia-se na mídia brasileira uma campanha sanguinolenta contra o PT. Se vier a acontecer em sua plenitude, será contra tudo o que partido representa. Ou mesmo o que um dia representou com mais firmeza. Não será uma campanha contra o que pode haver de podre na agremiação.Sugere-se em editorias e opiniões de articulistas e parlamentares tucanos que Lula precisará se livrar do PT caso queira terminar o mandato.
Justifica-se a pressão por conta de o tesoureiro do partido estar sendo acusado de comprar toda a bancada de deputados do PL e do PP. O curioso é que desses deputados acusados nada se fala. Alguns são bastante famosos, como Delfim Neto e o próprio presidente da Câmara, Severino Cavalcanti. Mas nenhum foi emparedado por veículos de comunicação para dar explicações. Ao contrário, o presidente do PT, José Genoino, tem sido acuado com ironias e grosserias em muitas de suas participações em programas de rádio e TV.
Não se espera que o midiático poder brasileiro se comporte como em relação a Eduardo Jorge Caldas, secretário-geral da Presidência da República, que, entre outras coisas, foi acusado de participar de suposto esquema de liberação de verbas no valor de R$ 169 milhões para o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo, e de criar caixa-dois para a reeleição de FHC.
Naqueles dias, tudo era debatido via jornais e revistas com excesso de cuidado além da conta. Espera-se que se vá mais a fundo, como manda o bom jornalismo, no escândalo do suposto mensalão.
Mas é bom que se saiba que no ataque ao PT o que está na mira não é só a sigla, mas algumas de suas bandeiras históricas e também de amplos setores da esquerda. A campanha para renovar o fôlego da onda das privatizações como maneira de diminuir a corrupção no Estado já começou. Porta-vozes do mercado têm tratado do assunto sem corar ou gaguejar. Atenção aos artigos e/ou comentários de rádio e TV de certos articulistas econômicos.
Ao mesmo tempo que ataca o PT por suposto envolvimento em corrupção, o midiático poder também joga contra sua credibilidade política. Mesmo sendo avalista da atual política econômica, nos últimos tempos passou a ampliar a voz daqueles que criticam o partido por ter traído princípios históricos e se rendido à lógica do capital.
Há uma clara tentativa de misturar as coisas para que tudo pareça resultado de uma mesma confusão. Na Venezuela, o sangramento público midiático de Chávez durou quase dois anos até que se buscasse o golpe que a revista Fórum denominou de midiático-militar. A imagem de um Chávez autoritário e fanfarrão, como grifou a revista Veja na edição de 12 de setembro de 2002 ("A queda do presidente fanfarrão") foi cuidadosamente trabalhada. Aqui no Brasil algo começa a ser construído nesse sentido.
Até a cartilha do Politicamente Correto, que de fato merece ser criticada pelo que representa de estapafúrdia, foi apontada como mais um lance do autoritarismo do atual governo petista, que pretenderia cercear até a língua portuguesa. Ignorou-se que ela em nenhum momento, mesmo sendo uma grande bobagem, tinha como único objetivo divulgar termos supostamente preconceituosos. Nada mais.
Em nome da liberdade de imprensa, a revista Veja fez uma matéria sem uma única fonte em on acusando a ex-prefeita Marta Suplicy de também comprar votos na Câmara Municipal. O título da matéria é sintomático da venezuelização do midiático poder brasileiro: "O mensalão da perua". A liberdade de imprensa de Veja nunca permitiria que um de seus funcionários escrevesse algo como "Picolé de chuchu repete as mesmas balelas em relação ao caos na Febem".
Evidente que se trata de uma liberdade assistida, onde quem pode de fato exercê-la não são os jornalistas, mas os donos dos veículos e seus capitães do mato, que tratam repórteres à base da chibata, como bem sabem aqueles que vivem ou viveram experiências de dia-a-dia em redações. Que também sabem o quanto essas empresas, paladinas da moralidade, respeitam, por exemplo, as leis trabalhistas.
Ou mesmo o quanto não fazem de acordos comerciais que garantem espaços editoriais aos tais clientes. E ao mesmo tempo mantém uma relação sabuja com eles.
O fato de investigar o PT e seus dirigentes faz bem à democracia. Fiscalizar o governo também. A imprensa deve ter liberdade para isso. Precisa fazer o seu papel. Mas há um limite entre investigação, fiscalização e perseguição.
Na sociedade contemporânea, onde a cidadania é garantida de certa forma pela informação que se recebe, quando o setor midiático - associado a um espectro da política - resolve fazer uma campanha persecutória contra um partido ou governo, sem tratar com rigor e responsabilidade o que publica, não há outro nome para designar tal movimento.
Busca-se nesse caso um golpe midiático. E para que isso aconteça basta ao midiático poder brasileiro acompanhar o toque editorial da última edição de Veja. Estará desenhado o cenário. E o cheiro podre que vem da Veja pode infestar a democracia brasileira. E não será a primeira vez que a "liberdade de imprensa" participa de um golpe no Brasil. Com a diferença, que desta vez, nada indica que os quartéis serão acionados. Na atualidade é mais aconselhável, para parecer democrático, que o midiático poder aja sozinho.
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