sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O caso boimate. Uma árvore que dá filé ao molho de tomate. E alguém acreditou nisso



Os LEITORES de VEJA acreditam em QUALQUER COISA. Basta você colacar duas ou três notinhas num desses BLOGUEIROS e: Pronto! O resto é com eles!!!

Wilson da Costa Bueno*

Os jornais e revistas ingleses gostam de " descobrir" fatos científicos no dia 1º de abril. A maior revista brasileira " comeu barriga" e entrou na deles. Conheça a história do " boimate", " uma nova fronteira científica".




O " fruto da carne", derivado da fusão da carne do boi e do tomate, batizado com o sugestino nome de boimate, constituiu-se, sem dúvida, no mais sensacional " fato científico" de 1.983, pelo menos para a revista Veja, em sua edição de 27 de abril. Na verdade, trata-se da maior " barriga" (notícia inverídica) da divulgação científica brasileira.

Tudo começou com uma brincadeira – já tradicional – da revista inglesa New Science que, a propósito do dia 1º de abril, dia da mentira, inventou e fez circular esta matéria.

A fusão de células vegetais e animais entusiasmou o responsável pela editoria de ciência da Veja que não titubeou em destacar o fato. E fez mais: ilustrou-o com um diagrama e entrevistou um biólogo da UPS, para dar a devida repercussão da descoberta.

Para a revista, " a experiência dos pesquisadores alemães, porém, permite sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".



O ridículo foi maior porque a revista inglesa deu inúmeras pistas: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com " hamburguer" e assim por diante. Mas nada adiantou.



A descoberta do engano foi feita pelo jornal O Estado de S. Paulo que, após esperar inutilmente pelo desmentido, resolveu " botar a boca no mundo" no dia 26 de junho.



O espírito gozador e , mais surpreendente às vezes até irado do brasileiro, no entanto, não deixou por menos. Durante o intervalo entre a matéria da Veja e o desmentido do Estadão, cartas e mais cartas chegaram às redações.



Um delas que, maliciosamente, assinou " X-Burguer, Phd, Capital", lembrava que no Brasil já haviam sido feitas descobertas semelhantes: o jeribá, cruzamento de jabá com jerimum, ou o goiabeijo, cruzamento de gens de goiba, cana-de-açúcar e queijo, e adiantava que seus estudos prosseguiam para criação do Porcojão ou Feijoporco, cruzamento de porcos com feijões que ele esperava dar como contribuição à tradicional feijoada paulista.



Domingos Archangelo escreveu ao Jornal da Tarde uma carta colérica contra a " a violação das leis naturais". Segundo ele, " do alto dos meus 76 anos, não posso ficar calado ante tal afronta às leis divinas. Boi nasceu para pastar, para puxar os saudosos carros do interior e para nos oferecer sua saborosa carne. E tomate, além das notórias qualidades que se lhe imputam na cozinha, serve também para ser arremessado à cabeça de quem perpetra tal montruosidade e, também, dos dão guarida e incentivam tais descobertas".



Francisco Luís Ribeiro, outro leitor da Capital, relata outros cruzamentos, além do boimate, que deram certo e cita experiências para " cruzar pombo-correio com papagaio, para o envio de mensagens faladas".



Finalmente, com o objetivo de pôr fim ao caso que já divertia as redações, a revista publicou, na edição de 6 de julho, ou seja, depois de dois meses, o desmentido: " tratou-se de lastimável equívoco". E justificou-se, explicando que é costume da imprensa inglesa fazer isso no dia 1º de abril e que, desta vez, havia cabido à revista entrar no jogo, exatamente no " seu lado mais desconfortável".

A Mancada maior, no entanto, deu o jornal Notícias Populares, de São Paulo, famoso pelas notícias policiais sensacionalistas e por fechar muito cedo as suas edições diárias.



Quando da agonia do ex-presidente Tancredo Neves, ele explorou à larga o fato, abrindo manchetes garrafais. No dia da morte, o jornal estava ainda em cima do processo de esfriamento do corpo, tema das últimas manchetes.



Na pressa de chegar cedo às bancas, não esperou até à noite para verificar o estado de saúde do presidente (ele tinha estado muito mal o dia todo) e, no dia seguinte, saiu com essa: " Trancredo cada vez mais frio." Foi o único jornal diário que não noticiou a morte do presidente. Foi também a maior " fria" do jornalismo brasileiro.

Notas



(1) O ano referido pelo artigo é de 1987, quando ele foi publicado no jornal Imprensa Brasileira 87.

Observações complementares:



1) Com o avanço da engenharia genética, esta notícia talvez fosse hoje menos sensacional. Os xenotransplantes e a agrobiotecnologia têm gerado resultados não menos surpreendentes;




2) Há quem suspeite de que a redação de o jornal O Estado de S. Paulo tenha forjado pelo menos algumas das cartas por ele publicadas a respeito do caso boimate;




3) Alguns trechos de cartas aqui citadas foram recuperadas da matéria do Estadão sobre a " barriga" da Veja, no dia 26 de junho de 1983 ;




4) As " barrigas" não são exclusividade dos veículos brasileiros e, em nosso país, da revista Veja;




5) Os pesquisadores precisam tomar muito cuidado antes de repercutirem fatos científicos, alardeados pela mídia, porque, embora teoricamente possíveis, podem ser, naquele momento específico , um equívoco. Lembremos do caso da fusão a frio, amplamente noticiada pela mídia mundial , e que se constituía numa fraude. A descrição e a análise deste fato foi objeto de uma interessante dissertação de mestrado, defendida na USP, pelo jornalista, professor e pesquisador Roberto Medeiros.

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OBS: Artigo publicado originalmente na edição especial Imprensa Brasileira 87, comemorativa do Dia da Imprensa, em 10 de setembro de 1987, p.12, publicada pela Comtexto Comunicação e Pesquisa e dedicada totalmente ao Jornalismo Científico.

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa.

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