por Paula Beiguelman*
Para melhor compreender o processo iniciado pelos tucanos faz dez anos, e que culmina na intenção referida no título acima, começaremos com uma sintética recapitulação, para em seguida prosseguirmos.
Assim, lembremos que, dentro do quadro de coação exercida pelo governo federal sobre os Estados, estes se viram induzidos, desde a segunda metade da década de 1990, a "ajustar-se" de qualquer forma, contanto que mantivessem equilíbrio entre receita e despesa.
Nesse contexto, foi promulgada em 1996, na gestão Covas, a lei estadual nº 9.361, que instituía o Programa Estadual de Desestatização (PED), o qual obedecia a um parâmetro exclusivamente financeiro.
No caso paulista, tratava-se de cumprir um acordo de renegociação com o governo federal, a fim de apurar cerca de 4 bilhões de reais.
Não importava que, para alcançar esse alvo, se desfalcasse o patrimônio público, retirando-lhe uma empresa do porte da Companhia Energética de São Paulo, responsável substancial pela produção de energia no País, sem contar seu papel no fomento do sudeste brasileiro e a tecnologia criada no curso da implantação da hidrovia Tietê-Paraná.
Inicialmente, foi desmembrada a distribuição.
Em 1997 foi vendido o controle da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL). Em 1998 foi a vez da Elektro e também da Eletropaulo. O caso da Comgás já estava sendo encaminhado.
Com essas "tarefas" realizadas, todo o empenho passou a se voltar, a partir de 1999, para a entrega da geração. A fim de que esse intuito fosse mais facilmente alcançado, a Cesp foi dividida em unidades de negócios. Não se levava em conta a especificidade das hidrelétricas brasileiras, que compõem um sistema interligado nacional; e, principalmente, foi concebida como serviço público, construído com enormes investimentos do Estado.
Dentro do esquema adotado, a Cesp foi subdividida e cindida, sendo criadas uma empresa de transmissão de energia elétrica e três empresas de geração. Ou seja, as hidrelétricas foram agrupadas em três blocos, referentes aos rios Paraná, Paranapanema e Tietê, respectivamente, que se pretendia "leiloar" logo.
Houve, porém, forte reação e mobilização. Além de liminares que levantavam questões referentes à usina Porto Primavera, o que impedia a publicação do edital venda.
Nessas condições, o governo estadual de São Paulo anunciava o adiamento do primeiro "leilão", o da Cesp-Paraná.
Postergava a operação, mas não desistia de quitar a questionável dívida com a União, através da entrega de um patrimônio público como o representado pela Cesp.
Apenas mudava de tática. Assim, decidiu "iniciar" a entrega pela Cesp-Paranapanema, a menor das três geradoras, seguindo-se a da Cesp-Tietê.
De fato, a Cesp-Paranapanema e a Cesp-Tietê foram vendidas ainda em 1999, a primeira à Duke Energy e a segunda à AES, num clima de veementes protestos, em leilões cheios de irregularidades, a começar pelos editais.
Ficou de fora a Cesp-Paraná, com suas importantes usinas de Ilha Solteira, Jupiá, Três Irmãos, Porto Primavera, Jaguari e Paraibuna - pelas razões que se seguem.
Com efeito, na ocasião em que a Cia. Energética de São Paulo era subdividida e cindida, a Cesp-Paraná foi escolhida para, como companhia-mãe, ficar com as dívidas das outras duas geradoras e continuar provisoriamente nas mãos do Estado. Daí o proclamado endividamento, usado como pretexto pelos adeptos da privatização.
Outros artifícios seriam ainda arquitetados para que a Cesp-Paraná, atual Cesp, fosse retirada do patrimônio público, como ameaça agora o governador Serra.
Nesse sentido, em 2005 se intensificava o foco sobre a Cesp remanescente. Alardeava-se o seu endividamento (artificial) e a necessidade de "saneá-la" para proceder à privatização!
A pretexto da busca de recursos, passou-se a cogitar preliminarmente a privatização da Cteep (Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista) como forma de conseguir 1 bilhão de reais a serem injetados na Cesp.
Ocorria, porém, que o Programa Estadual de Desestatização de 1996 (PED) abrangia a geração e a distribuição, mas não a transmissão, cuja permanência sob controle estatal era considerada imprescindível.
Contudo, tão afoito estava o governo estadual em fazer caixa que, renunciando a essa cautela, fez aprovar na Assembléia Legislativa mensagem propondo a inclusão da Cteep no PED.
Os defensores do interesse nacional argumentavam apresentando como alternativa a montagem de uma holding unindo a Cteep com a Cesp, valiosa geradora de energia abundante e barata. Mas o governo estadual não desistia do seu intento e até já anunciava data para o leilão.
Tratava-se abertamente de vender patrimônio para fazer caixa.
Tudo indicava que haveria resistência, como de fato ocorreu. O leilão estava marcado para março de 2006, porém, atendendo a liminar impetrada pelo Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo (Seesp) o Ministério Público chegou a suspender a privatização por tempo indeterminado.
Por fim, a venda da Transmissão Paulista acabou sendo transferida para junho.
O Ministério Público ainda procurou suspendê-la, apontando irregularidades desconsideradas pelos executores da privatização, não obstante terem se tornado objeto de inquérito. Contudo, o leilão se realizou assim mesmo, passando a Cteep para a colombiana Interconexión Eléctrica S.A. (ISA), que, com a aquisição, dobrava de tamanho.
Além de alienar a Cteep, o governo Alckmin executou uma ampla reestruturação financeira na Cesp. Ou seja, procedeu a uma capitalização que incluiu emissão de ações, injeção de recursos e venda de debêntures, com o objetivo de "preparar" a empresa para a entrega.
A Serra, seu sucessor, cabia a etapa final. E de fato, após um compasso de espera, ficou claro que a orientação do novo governo seria análoga à do anterior: fazer caixa vendendo empresas.
No dia 18 de abril de 2007, o Diário Oficial do Estado publicava o decreto nº 51.760, que transferia da Secretaria do Planejamento para a da Fazenda a atribuição de coordenar a avaliação, modelagem e execução da venda de ativos do Estado.
No dia 21 de agosto era aberta licitação para contratar a empresa encarregada de proceder ao levantamento das participações acionárias da administração nas estatais, a fim de definir seu valor de mercado e embasar a decisão de colocá-las á venda.
Na edição de 17 de setembro da Gazeta Mercantil, em matéria acerca de Serra intitulada Rumo a 2010, lia-se que a alienação da Cesp estava prevista para 2008.
Porém, logo se percebeu que o perigo que nos espreita é ainda mais abrangente. No dia 27 de setembro, o jornal Valor Econômico publicava extensa reportagem de Vanessa Adachi, intitulada "São Paulo avalia 18 estatais para reiniciar a privatização".
Simultaneamente o governador Serra enviava à Assembléia Legislativa o orçamento do Estado, que previa um salto substancial nos investimentos públicos para 2008.
Na sua edição de 1º de outubro, a Gazeta Mercantil elogiava: "Retomar o programa de privatização em São Paulo é apostar no futuro da economia".
Contudo, havia ainda quem tivesse dúvidas acerca do real intuito do governador. Era o caso de um colunista da Folha de S. Paulo (edição de 9 de outubro) que levava em conta a afirmação oficial do governo de que pretendia "apenas avaliar o patrimônio, registrado com valores ínfimos, defasados, e mostrar contas em ordem para tomar financiamentos".
Já as centrais dos trabalhadores, atentas à questão, promoviam um ato de protesto em frente à Secretaria de Estado da Fazenda, à qual, pelo decreto nº 51.760, cabia a atribuição de coordenar a avaliação, modelagem e execução da venda de ativos do Estado.
O governador negava que tivesse planos de privatizar a Sabesp, a Nossa Caixa e o Metrô. O secretário da Fazenda também insistia na afirmação de que estavam apenas desejando saber quanto "vale nosso patrimônio". Com os valores em mãos, o Estado teria mais facilidade para obter créditos internos e externos. Não descartava que, no futuro, o governo poderia optar por dividir ou separar ações de empresas ou "até vender parte delas", mas sempre mantendo o controle acionário...
Tais declarações eram postas em dúvida pelo "mercado", conforme se lê na cobertura feita pelo jornal Valor (edição de 10 de outubro) na qual se anuncia a escolha do Banco Fator para realizar a avaliação."Causa estranhamento entre executivos de bancos que o próprio governador José Serra negue tão veementemente a intenção de venda, ao mesmo tempo em que a licitação para contratar o levantamento está em curso, com detalhes publicados no Diário Oficial".
Também os trabalhadores apontavam a contradição entre a abertura de licitação para avaliar o preço das estatais paulistas e a afirmação (falsa) do governador de que não tinha intenção de vendê-las.
Na edição de 2 de novembro, o jornal O Estado de S. Paulo noticiava, com satisfação, que o governo havia contratado o Banco Citibank para efetuar a modelagem e execução da venda da participação acionária detida pelo Estado no capital da Cesp. E informava, complementarmente, que a iniciativa de vender a Cesp fazia parte de um pacote de privatizações em estudo no governo José Serra. O título eufórico da matéria era "Governo de SP contrata Citi para privatizar a Cesp".
A resistência prosseguia, conseguindo uma decisão da Justiça que suspendeu (por algum tempo) os efeitos dos contratos com os bancos Fator, encarregado da avaliação, e Citibank para executar as demais tarefas.
Superado esse obstáculo contraposto ao privatismo, a preparação da venda foi acelerada. E os disfarces foram sendo abandonados.
Na sua edição de 18 de dezembro, o Valor noticiava que o "mercado" aguardava a privatização da Cesp por volta de março de 2008. Lembrava ainda que o governo contratara o Banco Fator para avaliar as 18 estatais e o Citibank para definir o que poderia ser feito com elas, a começar pelas maiores da lista, o que incluía Nossa Caixa, Sabesp e talvez Metrô.
No dia 21 de dezembro, o Conselho Diretor do Programa Estadual de Desestatização (PED) aprovava a retomada do processo de venda da Cesp, a maior geradora do Estado, com potência instalada de 7,5 mil MW, distribuída em seis hidrelétricas construídas (Ilha Solteira, Jupiá, Três Irmãos, Porto Primavera, Jaguari e Paraibuna).
A reportagem do jornal O Estado de S. Paulo (edição do dia 22) lembrava que a empresa passara por ampla "reestruturação financeira", sempre com o objetivo de privatização. E também que a alienação da companhia energética fazia parte de um "pacote de venda de empresas em estudo no governo do Estado de São Paulo".
Além de saudar a ameaça, tranqüilizava-se os privatistas: a entrega se consumaria, uma vez que "o apetite dos investidores (sic) é grande, já que a privatização das geradoras federais está suspensa".
Nota divulgada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) no dia 24 confirmava a decisão do dia 21, quando o Conselho Diretor do PED recomendou ao governador a retomada da privatização da Cesp, avaliada em novembro pelos bancos Fator e Citibank em 14 bilhões de reais (apud Gazeta Mercantil, 26 de dezembro de 2007).
E na edição de ontem, dia 27, o jornal O Estado de S. Paulo festejava: "Leilão da Cesp terá disputa intensa, prevêem especialistas". Especialistas em privatização, claro.
Cumpre, é evidente, barrar a entrega da Cesp e das outras estatais paulistas. Esta deve ser nossa palavra de ordem acerca da questão.
*Paula Beiguelman, Professora Associada da USP
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