sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

RS: o berço do Fórum Social Mundial é governado hoje pelo espírito de Davos

A terra que serviu de inspiração para o Fórum Social Mundial e que acolheu suas primeiras edições hoje é governada por um núcleo político conservador, adepto dos padrões da iniciativa privada e dos choques de gestão. O espírito de Davos baixou em Porto Alegre e no RS. O que aconteceu?

por Marco Aurélio Weissheimer
para a Carta Maior

"Davos representa a concentração da riqueza, a globalização da pobreza e a destruição de nosso planeta. Porto Alegre representa a luta e a esperança de um novo mundo possível, onde o ser humano e a natureza são o centro de nossas preocupações. A experiência da democracia participativa, como em Porto Alegre, mostra que alternativas concretas são possíveis". Esse é um trecho da declaração dos Movimentos Sociais, aprovada ao final da primeira edição do Fórum Social Mundial, realizada em janeiro de 2001 na capital gaúcha. Naquele ano, Porto Alegre recebeu muitos títulos. Boaventura de Souza Santos chamou-a de "cidade global das alternativas". Bernard Cassen, de "embrião de uma internacional rebelde". "Símbolo da luta por um mundo justo e solidário", escreveu Emir Sader. Era isso mesmo. Porto Alegre foi escolhida como sede do primeiro FSM porque algo diferente estava acontecendo na cidade.

A capital gaúcha foi governada pelo PT, durante 16 anos consecutivos (1998-2004), sendo que, em quatro destes anos (1999-2002), o partido também governou o Estado do Rio Grande do Sul. As políticas desenvolvidas neste período seguiam na contramão daquelas aplicadas no país pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Quando o PT começou a governar Porto Alegre, vivia-se, no plano internacional, a era de Ronald Reagan, de Margaret Tatcher e grande elenco. E foi justamente navegando contra a maré e apostando no fortalecimento da democracia participativa e do espaço público, contra a lógica da privatização da economia, do Estado e da política, que Porto Alegre se tornou uma referência mundial não só para a esquerda, mas para os que, de algum modo, resistiam à hegemonia avassaladora do chamado pensamento único, fazendo eco a partir de Davos, seu ponto de encontro.

Em vários aspectos, Porto Alegre tornou-se uma espécie de trincheira de resistência a essas políticas. De resistência e de criação de alternativas, que tiveram no Orçamento Participativo, na valorização do espaço público e em um conjunto de políticas de inclusão social seus principais símbolos. A força desses símbolos e dessas políticas se materializou no Fórum Social Mundial que transformou Porto Alegre na capital do movimento internacional de resistência à globalização financeira e de construção de alternativas. Se é verdade que o chamado "espírito de Porto Alegre" nasceu nas manifestações de Seattle, no final de 1999, ele encontrou corpo físico e espaço de encontro na capital gaúcha. Não foram os governos do PT em Porto Alegre e no RS que inventaram o Fórum Social Mundial, mas o que eles fizeram serviu de inspiração e espaço de acolhimento para organizações e militantes do mundo inteiro.

O espírito de Davos baixou nos pampas

Passados sete anos, o FSM expandiu-se pelo planeta e ajudou a fortalecer uma rede de organizações políticas e sociais que lutam pela construção de mundo mais justo e solidário. E Porto Alegre? O que aconteceu neste período com a cidade que inspirou o Fórum Social Mundial? Em um artigo intitulado "Porto Alegre: o velho e o novo" (24/08/2002), Emir Sader escreveu: "O FSM foi uma vitória moral, porque ficou claro que os grandes temas da humanidade são discutidos em Porto Alegre, e não em Davos. Foi ainda uma vitória ideológica, porque ajudou a deslocar os grandes debates para a ótica social, articulando o econômico, o cultural e o político contra o economicismo". Os anos se passaram e agora, em 2008, os grandes temas da humanidade não são mais discutidos em Porto Alegre e no Rio Grande do Sul. O berço do FSM é governado hoje pelo espírito de Davos.

Em 2004, após 16 anos no poder, o PT perdeu as eleições municipais em Porto Alegre. O vencedor foi o ex-senador José Fogaça, ex-líder do governo FHC no Senado. Fogaça fez toda sua carreira política pelo PMDB. Um ano antes das eleições de 2004, deixou o partido junto com o grupo ligado ao ex-governador Antônio Britto, que implantou o processo de privatizações no RS. Esse grupo tomou de assalto a seção regional do Partido Popular Socialista (PPS), não por simpatizar com alguma idéia socialista, mas por conveniência eleitoral. Baseado em pesquisas que apontavam um alto grau de aprovação dos governos do PT na cidade, Fogaça construiu um ardiloso discurso eleitoral que prometia manter o Orçamento Participativo e tudo de bom que as administrações petistas tinham feito na cidade.

Esse discurso encontrou terreno fértil junto ao eleitorado da cidade. Embora uma expressiva parcela da população aprovasse as administrações petistas, havia também o fenômeno do "cansaço dos materiais". Dezesseis anos é muito tempo, é bom mudar um pouco repetia-se, então. E a cidade mudou. Fogaça foi eleito, manteve o Orçamento Participativo funcionando, mas o espírito mudou de corpo. Logo ao assumir, ele anunciou que Porto Alegre passaria a ser administrada com os padrões da iniciativa privada. Agora, há poucos meses da eleição municipal deste ano, Fogaça repete o movimento feito no passado e troca mais uma vez de partido, voltando para o PMDB. O Estado já havia tomado o mesmo rumo no final de 2002, com a eleição de Germano Rigotto (PMDB). Em 2006, a guinada conservadora se aprofunda com a eleição da tucana Yeda Crusius que começa a implantar a receita do "choque de gestão".

O poder político: qual o aprendizado?

Desde seu nascimento, o Fórum Social Mundial nunca se pautou por movimentos eleitorais. A luta pela construção de um "outro mundo possível" vai muito além das urnas. No entanto, entre as sete edições do FSM, cinco delas tiveram como sedes locais onde o poder político estava nas mãos da esquerda (quatro em Porto Alegre e uma em Caracas). A escolha destas sedes reflete uma tensão que atravessa todo o processo do FSM: é possível mudar o mundo sem tomar o poder? Há posições divergentes no interior do movimento, embora haja também um razoável consenso de que é preciso articular as duas formas de luta (eleitoral e social), cada uma com sua lógica e seu tempo. Em meio a essa tensão, porém, não há um debate sobre o que aconteceu na cidade que serviu de inspiração para os organizadores do Fórum.

Parece razoável propor um debate sobre as razões pelas quais uma experiência política de construção de alternativas ao neoliberalismo acaba derrotada pelo adversário. Quais foram os erros? O que poderia ter sido feito de modo diferente? Essas perguntas adquirem maior importância na medida que não se trata apenas de uma derrota eleitoral. O Rio Grande do Sul é hoje uma trincheira do pensamento político ultra-conservador. Virou terra dos transgênicos, dos desertos verdes, da maior votação contra a proposta de desarmamento da população, da defesa da pena de morte por autoridades públicas e, principalmente, da progressiva privatização de espaços públicos. Não e pouca coisa. Os ventos que trouxeram milhares de pessoas a Porto Alegre para o FSM mudaram de rumo e apontam hoje para uma pequena cidade na Suíça.

O que ficou do FSM em Porto Alegre? A julgar pelas atividades programadas para o Dia de Mobilização e Ação Global (26 de janeiro), não muita coisa. Está sendo convocada uma concentração em frente ao Palácio Piratini, que será seguida por uma caminhada até a Esquina Democrática, no centro da capital. Durante o ato será lançado um manifesto em defesa da volta do Fórum para Porto Alegre, em 2010 (em 2009, será em Belém, Pará). Não há muito mais do que isso. A imensa maioria das organizações sociais que participou das edições do FSM na cidade não programou debates ou atividades para a data. A pobreza da agenda reflete a nova atmosfera que paira sobre a capital gaúcha e o RS.

O Fórum pode retornar a Porto Alegre de várias maneiras. Uma delas é olhar para o solo que acolheu generosamente milhares de pessoas e desejos, centenas de organizações e projetos, e conversar sobre o que aconteceu com a "cidade global das alternativas", como escreveu Boaventura de Souza Santos. É verdade que não foi apenas Porto Alegre que mudou. O PT, o mundo e o ambiente no qual o Fórum se move também mudaram desde 2001. Quem e onde está se pensando isso? Alguém está pelo menos imaginando algo a partir de tais questões? A imaginação não é o único combustível da política mas, sem ela, a política, compreendida como construção de sociedades possíveis, simplesmente não existe. Um debate sério sobre esses temas poderia fortalecer as organizações políticas e sociais que ajudaram a fazer de Porto Alegre uma referência para a esquerda mundial. Contra Davos, a favor do planeta e da democracia.

Fonte: Carta Maior (www.vermelho.org.br)

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