sábado, 16 de fevereiro de 2008

Matéria bruta

Olhem que legal: Romério Rômulo, leitor do Blog, é um poeta. Abaixo publico uma pequena amostra de suas obras!





*Por Romério Rômulo


rio acima duas canções se fazem.

alargado meu peito desfalece.

que arcos hão de vir, sombriamente,

falar, cerrado puro, do meu lastro?


e se os risonhos da manhã me deceparem?

acaso sou poesia ou sou manhã?

acaso uma nascente é tão nascente

que só se faça romper pela clausura?



vou de saberes, que saberes estes

são uivos que caminho pelas águas

e águas são de um sólido mais brusco

que desfalecem os ranços já chegados.

cauda selvagem, se me sobra toda

a vida por parir mais que selvagem.



(raso de delírio: o meu cão morto)



ancestral perverso desta fuga,

arredondada paisagem do inferno,

este caminho é pleno de relatos.



saber-lhe os uivos, que mais for, saber

o elo da montanha que lhe brusca

um último estandarte desta voz.



que mais trazer o pulso, uma verdade

corrente noite, ilustre madrugada,

um passo de caminho, uma afoiteza.

tonitroamentos todos são solenes

uivos relatados, que outros uivos

só podem rastejar num corpo alado.



(são uivos relatados)




poeta que de minas faz seu canto

vou revelar aquela face rubra

de mais um sol antecipado noite.



trazer crateras de montanha, mar

de minérios que faz hortelã

ter uma sabor tomado por ausência.



um verdejante arco de boi, traste

de, no cerrado, dente mudo, ver

na sua carne os rasgos desta gente.



que animal há de viver somente

no exercício fácil do resgate?

que montanha rasgar, tão inimiga,

se sobra o vácuo puro do mistério?



minas mais que sabor: traição, penúria,

é mais que o fácil boi dolente

remansado de pragas pelos pêlos.



é tão mais, mais que a barba bisavó

de inácios que me soam serem eu.



inesgotável minas, uns deuses

lhe ampliaram a face-toda-água.



(96, janeiro)




duelo enfastiado, tão poesia

sem rumo dos corpos que se atrelam

ao vento seco, à dura memória do cerrado.

mais ver o lastro de carne, pisoteio

de facões arruelados, sangue vertente

de guelas.

- farpas do vento não contêm as noites.-

cada corpo, bambu, se lambe

de terra, ao saber o outro se aproxima.



sol recolhe carnes, ossos, telhas lambidas

da absurda imagem.



(farpas do verbo não contêm as noites)




buscar os bois do meu campo, uivo, latido,

guardar os animais da memória,

latir uma cavalo potro ressequido,

levantar a água esguia do poço,

saber uns baldes de tanto cansaço.



tudo é ausência de cerrado.



avós de diamantes, tesouros monásticos,

assembléias de escravos, podem ser razão

de minha ausência.



uns valos de bois, umas manias de cavalo

chucro,

um atar de cachorro louco.



luzes e bois, fundidos, se rebatem.



(levantar poço e água)




um corpo pode ser muito tamanho

se lhe carregam um lastro tão maior

que o tempo. lhe devora as entranhas

o nu ressequido, extirpado, nuvem

de gafanhotos da noite.



tamanho corpo, nu, pode ser noite,

se a alma rasa sobrar só em calúnia,

se a boca nua se extirpar em pedra,

se o rasgo do ouvido for espaço.



(extirpar o cancro salgado do olho)



declaro:



carrego no braço os meus rebanhos,

o cabresto de toda adjacência,

a sobra mais latente de uma língua.



te dou de mim o que couber tua mão.



(declaro aqui de mim)




terras e águas, meu ávido destino,

lusco-fusco de cansaço na noite.

belzebus tardios lufando prumos,

estandarte de rito feito treva.

se, babilônia no peito, os azares

-fatídicos e atávicos azares-

acalantam os poços da memória,

só o banal do vento tem destino.



saber mais, se o tempo só, em água,

percorre o assobio da treva.

um ananás alimenta aves do escuro,

um tanque de melados devaneia.



- quando carne se revela em açúcares,

a pele do homem, toda, é uma noite.



(toda pele do homem)





recarregar de asperezas o corpo.

a manhã faz tempo ser espinho,

se outra novela não disser do outono.

quando, cruel viela, direi que outro

foi o campo vital da minha dúvida?

quando, noite passada, farei sono

ser mais que soturnez?



tanto mundo se mostra pedra

se facas regateiam nacos.



(a musa carece de minguante)





1.

aquele mar de fendas que te lasca

o corpo de sabidas substâncias

tem um rouco tinir de asa morta.





2.

velada montanha jaz rio adentro.

seus peixes de hortelã são um ofício

das telas.



(paisagem)





1.

túrgida e ventada manhã,

toda ela acesa.

duro ranço da noite. em verdade

martelos são macios se levados

ao fogo da paixão e perquiridos.



2.

e produzir umas clarezas tais

que não se faça ambigüidade equivalente.

martelar o afoito do dia,

reduzir a quirera da noite no sopapo.

rasgar latejamento, sangue podre.



se sobra escuridão, que assim seja!



(destroncamentos)





sou torto

e minha cor, azeda.

calo e punhal rechaçam toda mágoa.



(astro)




se as entranhas da terra te atropelam,

resta o veio da manhã, a pedra,

o dedilhado de montanha que te lambe.

falta tua memória de noite, teu fazer

de nuvem, tua viagem de eito.



aços convirão sobre teus ombros.

feroz, manhã há de lamber tua boca.



(aços tua viagem)




o ato de viver cabe bravura

se o corpo, fel, resguarda da morada

o cálcio, a teta, a gana, o consistente

olho, brilho, o rastro da fumaça,

a lasca da madeira, caule.



quando ser, o fel da alma

tem douto vinho da maledicência;

a rusga da noite,

traz os infernos da entranha.



quando caber é ato de vaidade,

se tua mão afaga a outra mão?

se teu calo escorrega no desastre

do olho que te fala por paixões?

quantos de nós podem rasgar o vale

da agonia devorada?

quantos, sangue no corpo, trazem o embate

da liberdade no olho?



se, sendo poucos, somos tantos. quantos.



(se teu calo escorrega no desastre do olho)




Sou, por meus inteiros, vários.

minhas frações se fazem de repente.

o olho, de inteiro e faces,

disseca os cacos da manhã (lavada).

múltipla mão, da luz, me regurgita

uma estranha verdade, um denso espanto.



(minha doce face fuzilada)




uma poesia deserta, texto de pedra e secura.

poesia de ferreiro: metal e martelo.

uma poesia brasa candente. cozer tudo,

ato do verso, dure tanto ou nada.



(abertura)



“a carne é reticente; a noite cega.” (r.r.)


*Romério Rômulo (Ouro Preto/MG). Nasceu em Felixlândia, MG. É professor de Economia Política da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e um dos fundadores do Instituto Cultural Carlos Scliar (Ouro Preto, MG). Prefaciou a primeira edição assinada das poesias eróticas de Bernardo Guimarães, O Elixir do Pajé (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Até então todas eram clandestinas. Publicou vários livros de poesia, entre eles Bené para Flauta e Murilo (1990) e a caixa Tempo Quando (4 livros em 2 volumes, 1996). Os poemas acima fazem parte do livro Matéria Bruta, que saiu pela Editora Altana, São Paulo, SP, 2006.



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