segunda-feira, 21 de julho de 2008

Disputa na rua principal

A máxima do príncipe de Salina, “muda-se alguma coisa para não mudar coisa alguma”, no Brasil tem uma versão peculiar: “Deixa como está para ver como fica”. A primeira é vincada pelo cinismo e pela certeza na afirmação perene da lei do mais forte. A verde-amarela contém na receita uma larga pitada de medo. Sabemos o que, entre nós, significa amarelar.

Muitos graúdos nativos estão com medo neste exato instante, basta um mínimo de interesse para senti-lo. Esperam que tudo fique como está, que o amarelo se sobreponha ao verde, e isto vale sobretudo para quem conhece o significado das cores. CartaCapital faz sua aposta na linha contrária, e reforça a idéia de que alea jacta est, os dados estão na mesa. A esta altura, é impossível voltar atrás no processo precipitado pela operação que incrimina Daniel Dantas e Cia.

O medo é traço marcante da índole brasileira. Os donos do poder o sofrem porque temem qualquer alteração nos seus privilégios, provocada, quem sabe, por algum sinal de rebeldia partida de um povo que traz no lombo o sinal do chicote da escravidão. Tal é o fundo musical do enredo tradicional. Mas a ameaça parte de outro canto. Daniel Dantas e Cia. pertencem legitimamente, digamos assim, ao establishment nativo, e o caso monumental, a crise recém-deflagrada, revela uma dimensão de longe maior do que poderia parecer.

Está em jogo a mentalidade predatória do país da minoria branca. Quem se supunha impune ad aeternitatem tem de repensar suas convicções e a si mesmo. É disputa soturna e por ora em boa parte encoberta. Há quem a apresente como desafio no arrabalde, entre mocinhos e bandidos contingentes, sem que fique claro quem é quem de um lado e de outro.

Permito-me dizer, de saída, que, no entendimento de CartaCapital, o juiz De Sanctis e o delegado Protógenes são atípicos e galgam corajosamente a poeira da rua principal. Se o relatório já conhecido de autoria do delegado, capaz de embasar as primeiras decisões do juiz, não tem a necessária substância na parte que diz respeito aos envolvimentos da mídia, em compensação é mais do que suficiente para exibir a profundidade do mal, a gravidade da situação, as responsabilidades compartilhadas pelos donos do poder.

Recordo um dia de novembro de 1998, quando pude ouvir trechos de uma gravação ilegal de telefonemas grampeados na sala da presidência do BNDES. O grampo remontava a alguns meses antes, quando Luiz Carlos Mendonça de Barros, então ministro das Comunicações para, tempos após, assumir o próprio BNDES, diz a quem substituiria, André Lara Resende: “Temos de fazer os italianos na marra (leia Telecom Italia) que estão com o Opportunity, eu vou praí para fechar o esquema”. E acrescenta: “Vamos fechar daquele jeito que só nós sabemos fazer”.

Eis a semente do enredo que chega agora ao auge. Pois é, só eles sabem fazer. Nada a ver com mortais comuns. Quem fica em xeque são os semideuses, situados de um lado e de outro, nas facções contrapostas, acostumados com a impunidade e treinados para a chamada conciliação das elites, o entendimento entre desafetos quando a paz dos graúdos se faz necessária.

Este conúbio forma uma pasta de súbito uniforme, na qual os componentes se mesclam à perfeição de sorte a não permitirem discernir uns dos outros. É isto que avulta no relatório do delegado Protógenes, a mistura compacta e aterradora. O documento com suas 240 páginas é parcial, há outro de 7 mil, cartapácio disposto a destruir criados-mudos, e com ele chegaremos ao fundo do poço.

CartaCapital insiste: estamos só no começo. Nada impede que a máxima do príncipe de Salina vingue como sempre. O homem não é um bicho confiável. Mas antes, acreditamos, virá um vendaval.

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