Alex Castro
Na edição desse mês da revista "Trip", o colunista Henrique Goldman pede desculpas públicas à empregada da família "com quem transou, contra a vontade dela, quando tinha 14 anos". Ele narra seu tesão pela moça, sobre quem ele não sabia nada: "Quantos anos você tinha? Vinte, trinta? De onde você era? Quem você era? Só sei que você era empregada de casa, que teus seios eram fartos e que eu tinha 14 anos. ...A idéia de que você `dava' não saiu da minha cabeça, e você começou a estrelar obsessivamente todas as minhas punhetas. "
Finalmente, num dia de casa vazia, ele e um amigo abordam a moça, "insistem" para que ela "dê" para eles, até que a moça cede: "Pedimos, insistimos sem parar para que você `desse' para nós... Você não queria, mas, por força da nossa insistência, acabou cedendo. Sinto ódio do Brasil quando penso que você provavelmente tivesse medo de perder o emprego. ...Não foi bom, Luisa. Na hora do vamos ver fiquei envergonhado e não rolou legal. Até hoje me envergonho. Muito."
E termina assim: "Espero que você esteja bem. Espero que para você a memória daquela tarde não seja tão ruim e que você hoje possa rir do que aconteceu."
O texto gerou muita polêmica. Só no site da revista, onde pode ser lido aqui (Revista Trip) já existem 644 comentários revoltados e subindo, muitos deles pedindo o boicote à revista, a cabeça do editor e a prisão do colunista. Um exemplo: "Prisão a esse tal de Goldman por apologia ao crime (tão hediondo que é). Boicote total a essa tal de`Trip' e seus anunciantes (por divulgar e pagar por um absurdo desses). Eu poderia ter vivido mais 30 anos sem nunca ter lido essa revista, mas essa "carta/confissão" roda pelos emails."
Entre blogs, a repercussão também foi feroz (Alex Maron): "Eu já vi de tudo nessa vida. Mas uma pessoa confessar um abuso como esse assim? Alguém sabe me responder se o que essa pessoa praticou é estupro mesmo ou tem algum outro nome? ...Se for mentira, ele é só um babaca. Se for verdade, é um criminoso!! Que legal!"
Naturalmente que é um estupro, pois ela pode argumentar que achou que iria perdeu o emprego e a subsistência se não cedesse: "Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça". Se isso não é uma grave ameaça nos dias de hoje, não sei mais o que é. Entretanto, a questão da verdade ou da mentira é mais complexa: "Dom Casmurro" também é "mentira" do começo ao fim. Será "babaquice"?
Finalmente, em uma nota acrescentada posteriormente, a revista esclareceu que o texto era ficcional, mas não fica claro como o leitor deveria ter sabido disso, já que não havia indicação alguma e a própria carta era assinada com o nome do colunista: "`Trip' esclarece o que deveria ter ficado claro já na publicação da coluna "Mundo Livre" da edição de setembro: trata-se de um texto de ficção, um recurso usado com freqüência pelo colunista Henrique Goldman."
Confesso que fiquei bastante surpreso pela reação dos leitores. Apesar de tosco e falho em vários sentidos, o texto claramente não é uma apologia ao fato, mas sua denúncia. Se ficção, é uma tentativa de quebrar o silêncio sobre um assunto espinhoso. Se não-ficção, é sobre um sinhozinho branco de meia-idade finalmente compreendendo que sua relação "tão natural" com sua empregada era, na verdade, de dominação e horror.
A revolta dos leitores parece ser mais contra o que foi articulado ("como ele tem coragem de confessar um crime desses com essa cara-de-pau!") do que contra o que foi feito. Mas o crime é cometido todo dia, várias vezes por dia, em todo o Brasil: sua articulação em texto foi apenas uma. O que é pior?
Ainda me lembro, no começo da década de noventa, em uma roda de adolescentes classe média-alta da Barra da Tijuca, meus amigos discutindo os méritos comparativos da "empregadinha" sobre a "puta". A maioria tinha perdido a virgindade com putas, mas acabaram "evoluindo" para as "empregadinhas", porque elas "não é só pagar, você tem que seduzir."
Dentre a multidão de anônimos sinhôzinhos brancos da classe média que comete esse crime com naturalidade, sem nem mesmo enxergá-lo como crime, sinceramente achando até que estavam seduzindo as "empregadinhas" que "comiam", já é um passo adiante (pequeno, sem dúvida) que o narrador ficcional de Goldman ao menos em retrospecto perceba seu crime e peça desculpas. Nada perdoa um estupro, naturalmente, mas reconhecer o crime é o primeiro passo para deixar de cometê-lo.
A relação entre família e empregada doméstica ainda é uma das relações mais invisíveis da sociedade brasileira. Apesar de profundamente injusta e opressora, herdeira direta da escravidão, ela ainda pouco é pensada ou problematizada: para nossa classe média, que cresceu com uma escurinha limpando suas privadas, nada poderia ser mais natural. O texto de Henrique Goldman teve o enorme mérito de levantar essa questão. Pena que as pessoas realmente não saibam ler.
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