Eduardo Guimarães abre o ato com leitura de um manifesto
Os manifestantes — cerca de 500 pessoas — denunciaram os laços íntimos entre a família Frias, proprietária do jornal, e a ditadura militar (1964-1985). Fizeram mais: renderam homenagens às vítimas dos “anos de chumbo” e rechaçaram o termo “ditabranda”, evocado pela Folha para relativizar o regime totalitário. Eram ex-presos políticos e familiares de vítimas da ditadura, lideranças partidárias, ativistas dos mais diversos movimentos da sociedade civil e de organizações não-governamentais.
Havia até um leitor da Folha, Adilson Sérgio, que não se contentou em mandar mensagens ao jornal, foi à manifestação e pediu a palavra. “Vim aqui em nome de meus filhos e netos, que precisam saber a verdade. Ditadura é ditadura. Ditabranda é a porra”, disparou, indignado.
Antes do ato, a Rua Barão de Limeira já estava tomada por faixas e cartazes que antecipavam o tom do protesto. “Folha, ditabranda nunca existiu. Ditadura nunca mais”, dizia uma das faixas. “De rabo preso com o feitor”, ironizava um cartaz. “‘Ditabranda’? No dos outros é refresco”, enunciava uma mensagem mais audaciosa.
“Com esse ato, queremos estimular a sociedade a sair da afasia, da letargia”, explicou o presidente do MSM, Eduardo Guimarães, antes de ler para o público o manifesto “Pela Justiça e pela Paz no Brasil”. Segundo Eduardo, “depois de 20 anos de ditadura, as pessoas no Brasil têm medo de se manifestar. Mas não podemos ficar quietos”.
“Ditabranda”
O manifesto do MSM cita dois editoriais da Folha. Um deles, assinado por Octávio Frias de Oliveira e publicado em 22 de setembro de 1971, exalta o “governo sério, responsável, respeitável” de Emílio Garrastazu Médici — o mesmo governo que massificou a tortura e a repressão por meio da Operação Bandeirantes (Oban). O texto comemorava ainda um Brasil “de onde a subversão” era “definitivamente erradicada, com o decidido apoio do povo e da imprensa.”
O segundo editorial, de 17 de fevereiro passado, desqualifica o presidente venezuelano Hugo Chávez em favor dos generais-presidentes da ditadura brasileira. “As chamadas ‘ditabrandas’ — caso do Brasil entre 1964 e 1985 — partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”.
O conceito de “ditabranda”, tão falso quanto uma nota de R$ 3, foi repudiado por centenas leitores da Folha e personalidades como a professora Maria Victória Benevides e o jurista Fábio Konder Comparato. Aos dois em particular, a Folha esgarçou o desaforo, classificando a indignação deles de “cínica e mentirosa”. O ato deste sábado lhes prestou solidariedade.
Uma das presenças mais surpreendentes na manifestação foi a do padre Júlio Lancelotti, alvo recente de calúnia e difamação na grande mídia. “Deixei uma peregrinação porque fiz questão de vir para rezar aqui”, afirmou Lancelotti, que criticou o termo ditabranda — “os mortos morreram do mesmo jeito”. Segundo o padre, “a imprensa nos tortura psicologicamente, estupra a consciência do povo”.
O caso Roque
O advogado criminalista Egmar José de Oliveira, da Comissão Anistia do Ministério da Justiça, contestou a “brandura” do regime militar com o exemplo de duas professoras — uma de Santos, outra do Rio de Janeiro — que foram sequestradas e abusadas pelo regime. Segundo Egmar, um dos próximos objetivos da comissão é investigar quais foram os empresários que ajudaram a bancar a Oban. “Os Frias que se cuidem.”
Ex-presos políticos, como o sindicalista Toshio Kawamura e os jornalistas Celso Lungaretti e Ivan Seixas, fizeram depoimentos emocionantes. “Se foi só ditabranda, onde estão meus companheiros?”, questionou Toshio, aos prantos, citando nomes de diversos militantes mortos pelo regime.
Ivan relatou uma das mais marcantes demonstrações de colaboracionismo da família Frias. Em 1971, ele e o pai — o metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas, conhecido como Roque — foram presos e torturados no DOI-Codi. Na madrugada de 17 de abril, durante um “passeio” com policiais, Ivan conseguiu avistar, na capa do jornal Folha da Tarde, a notícia de que seu pai havia morrido.
Quando voltou para a prisão, porém, encontrou Roque ainda vivo, mas prestes a ser morto. O jornal dos Frias sabia de antemão da morte e, a serviço da Oban, precipitou a divulgação. De quebra, o veículo que transportava Ivan no “passeio” era também do grupo Folha.
“Falo aqui em nome de companheiros presos, companheiros torturados, companheiros assassinados, e em nome das pessoas transportadas ou capturadas em emboscadas por carros da Folha”, disse Ivan no ato. “Otavinho (Otávio Frias Filho, atual diretor de redação da Folha de S.Paulo e filho de Octávio Frias de Oliveira) tem algo em comum comigo: nós dois honramos a luta de nossos pais.”
Cerca de 345 pessoas assinaram a lista de presença. Outros tantos passaram em algum momento pelo ato, que começou a receber manifestantes às 9h30 e se estendeu até as 12h30. Apesar disso, um tal de tenente Crisóstomo, da Polícia Militar, estimou o público em “umas 65 pessoas, no máximo 70”. E debochou, rindo: “Mas, se você perguntar para eles, vão falar um milhão”. Um consolo, enfim, para a Folha: havia alguém ali à altura de sua desfaçatez.
De São Paulo,
André Cintra
Fotos: Jailton Garcia
Veja mais fotos da manifestação contra a Folha
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