sábado, 22 de agosto de 2009

NÃO JULGUE UM LIVRO PELA CAPA

ALI KAMEL SE RENDE A LULA



O presidente, pela contagem feita, utiliza em suas falas um total expressivo de mais de 11 mil palavras. De acordo com critérios científicos, trata-se do vocabulário de uma pessoa com curso superior. É algo cerca de quatro vezes mais que uma pessoa de sua formação escolar utiliza. Lula, no entanto, não se notabiliza apenas por ampliar seu universo de palavras, mas pela capacidade de ser compreendido por quem não navega no mesmo oceano linguístico. Como comunicador, não há como fugir, o “cara” é um fenômeno: ele fala com a desenvoltura de um doutor e é entendido como um colega de botequim.


Dicionário organizado pelo jornalista desvenda o discurso de Lula

Houve um tempo em que um improviso de Lula era esperado por alguns jornalistas muito mais como oportunidade de tirar uma casquinha do que como momento de buscar informações relevantes para o leitor. O preconceito era patente: sem curso superior, tropeçando em construções gramaticais, com sinceridade que beirava a temeridade, o presidente era visto como promessa de deslize, como alguém que fora do script não era capaz de manter a liturgia do cargo. O feitiço, no entanto, desandou: Lula foi conquistando ouvintes qualificados (inclusive estadistas e rainhas), cativando por sua retórica límpida e construindo no dia a dia, pela palavra viva, seu ideário político. Tornou-se um comunicador único, fato reconhecido pelos aliados e adversários mais ferrenhos.

Entender esse processo foi a tarefa que o jornalista Ali Kamel se deu. E escolheu o caminho mais difícil: analisar todos discursos e manifestações espontâneas de Lula, da posse a 31 de março de 2009. São falas públicas, entrevistas e programas de rádio (Café com o presidente) que somam 1.554 textos (847 discursos, 503 entrevistas e 204 programas radiofônicos) que fazem uma inversão no método habitual de análise política: em vez de reunir textos sobre Lula, o jornalista deu consistência e organização às falas do próprio presidente.

E não foi fácil. Em primeiro lugar, Lula fala muito. A análise quantitativa de Ali Kamel mostra que, no mesmo intervalo de tempo, Lula falou 52% a mais que Fernando Henrique Cardoso. E olha que FHC nunca foi de ouvir muito e não fugia de palanques e entrevistas. Além disso, a fala do presidente petista é permeada de temas recorrentes, que se distribuem ao longo de todo o tempo abarcado pela pesquisa, exigindo esforço de organização para que ganhem sentido unitário. Muitas vezes isso não foi possível, em razão das contradições também presentes, que são apresentadas com o cuidado de apontar a cronologia das opiniões divergentes. Um caso clássico é a posição de Lula em relação à Bolsa Escola de FHC, ironizada como proposta assistencialista do tucano (“Bolsa disso, bolsa daquilo”), até a defesa apaixonada do Bolsa-Família de seu governo (“Temos que mudar determinados conceitos que foram criados ao longo do tempo”).

A escolha pela forma de dicionário exigiu a criação de programas específicos de informática, que mapearam todas as ocorrências entre as mais de 3 milhões de palavras. A partir daí, o autor selecionou as que de fato sintetizam conceitos e opiniões significativos, que deram origem aos verbetes. Cada verbete é desdobrado em subverbetes, criando um caminho lógico que vai do geral para o específico. “Constituição”, por exemplo, se estende por 14 subverbetes: depois de reproduzir a avaliação geral de Lula sobre a carta, segue com trechos de elocuções de diferentes datas, que tratam da obediência à Constituição, igualdade de raça, direitos básicos, distribuição de recursos, o acerto na teoria, as limitações na prática etc.

Dicionário Lula, na realidade, congrega dois livros. O primeiro, com 100 páginas, traz a análise do discurso do presidente feita por Ali Kamel. O jornalista e sociólogo lembra que em outros países existe uma forte tradição no setor. O que um presidente pensa, diz e escreve passa pelo crivo de cientistas políticos e historiadores. Introduzir essa vertente analítica no Brasil, sobretudo no caso de um presidente oral como Lula, exigiu que se sistematizasse o pensamento a ser analisado. Esse é o segundo livro, o dicionário propriamente dito, feito com todo o cuidado lexicográfico. Articular as duas partes é a tarefa do leitor e pode ser feita com objetividade ou paixão. O dicionarista fez sua parte: explicou o método, fez o trabalho braçal e deu ferramentas analíticas.

Uma das constatações do autor está relacionada à extensão do vocabulário utilizado por Lula. O presidente, pela contagem feita, utiliza em suas falas um total expressivo de mais de 11 mil palavras. De acordo com critérios científicos, trata-se do vocabulário de uma pessoa com curso superior. É algo cerca de quatro vezes mais que uma pessoa de sua formação escolar utiliza. Lula, no entanto, não se notabiliza apenas por ampliar seu universo de palavras, mas pela capacidade de ser compreendido por quem não navega no mesmo oceano linguístico. Como comunicador, não há como fugir, o “cara” é um fenômeno: ele fala com a desenvoltura de um doutor e é entendido como um colega de botequim.

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