quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

De Aristide.Briand@edu para José.Serra@gov

ELIO GASPARI

Prezado governador José Serra,

Fora da França pouca gente lembra de mim. Chamo-me Aristide Briand e era o primeiro-ministro no dia 21 de janeiro de 1910, quando o Rio Sena subiu oito metros, inundou Paris, desalojou 200 mil pessoas, matou umas vinte e, em dinheiro de hoje, destruiu um patrimônio avaliado em um bilhão de dólares. Minha enchente começou no mesmo dia em que, cem anos depois, os rios de São Paulo alagaram uma parte de sua cidade e oito pessoas morreram.

Soube que o senhor poderá ser candidato a presidente do Brasil e acho que posso ajudá-lo com algumas ideias gerais e uma sugestão prática.

Antes, permita que me credencie: a enchente foi em janeiro e eu ganhei a eleição em abril. (Ao todo, ganhei outras dez.)

Vossa enchente haverá de passar. Com isso, baixarão as tensões e o senhor poderá se dedicar ao combate a alguns vícios de gestão e de política. Entendamo-nos: o Rio Tietê está assoreado, o manejo das águas foi inepto e a Defesa Civil, quase inexistente. Esses fatores não impediriam o desastre, mas poderiam reduzi-lo. Aqui, por exemplo, os túneis dos esgotos e do metrô aumentaram a vulnerabilidade da malha urbana.

Há outros vícios, d'alma. São Paulo não ama seus rios. Basta olhar a feiúra das vossas pontes. (Está aqui o Le Corbusier dizendo que há uma nova, bonita.) Os administradores da cidade desdenham as vicissitudes dos moradores das áreas que são inundadas e frequentemente culpam os cidadãos por morar em localidades de ocupação irregular. Um administrador não pode dizer que é irregular a ocupação de uma área onde há edificações com mais de dez anos. Não existem uma cidade e uma não-cidade. O senhor acha que alguém mora em Jardim Pantanal porque não gosta da Avenue Foch? Não conheço político que deixe de pedir votos nesses Jardins. Por falar nisso, por que vocês chamam essas áreas de Jardins?

A responsabilização dos moradores busca esconder a responsabilidade dos administradores. Se ousássemos recorrer a esse tipo de argumento em Paris, a guilhotina teria voltado à Place de la Concorde, que esteve inundada em 1910. O Luís XVI chorou ao ver uma fotografia do seu prefeito visitando Jardim Romano, encolhido na caçamba de uma camionete. Pensou que o levavam para a lâmina.

Governador, procure entender a oposição. D. Hélder Câmara me mostrou alguns papéis do Partido dos Trabalhadores e acho que fazem sentido. Não me entenda mal. Apesar de ter começado na política pela esquerda, baixei-lhe o sabre quando foi necessário.

Finalmente, a proposta prática: faça como fizeram em Paris. Providencie mapas de suas cidades, detalhados ao nível de quarteirão, e identifique as áreas onde há riscos de transbordamento dos rios, onde há o perigo de empoçamento do subsolo e quais os lugares onde o fornecimento de energia ficará vulnerável. Em Paris, por exemplo, sabemos que pode faltar luz no Banco de França, a prefeitura pode ser inundada de baixo para cima e o Sena pode alagar um trecho da Avenue Montaigne.

Coloque esses mapas à disposição do povo. O senhor jogará luz sobre os riscos da população e sobre as responsabilidades dos administradores.

Amem vossos rios, amem toda a cidade, amem vosso povo. (Eu sou um romântico, mas ganhei o Prêmio Nobel da Paz.)

Saudações parisienses

Aristide Briand

ELIO GASPARI é jornalista.

* Texto publicado no Globo de hoje

 

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