A indicação do advogado Joaquim Benedito Barbosa Gomes para ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) foi então festejada por ser o primeiro negro a integrar aquela corte. Seu estupendo “saber jurídico” e sua “reputação ilibada” – os dois pré-requisitos básicos para o cargo – foram ofuscados por essa outra peculiaridade do escolhido do presidente Lula: a cor. Um ministro negro no STF?
Desde junho de 2003, porém, também esse “estrépito midiático”, como ele classifica o fato, saiu de foco. Entrou característica ainda mais marcante em sua trajetória de vida: a coragem. Ostenta postura inédita no STF, encara o corporativismo da Ordem dos Advogados (OAB) e na vida particular toureia problemas de saúde.
Joaquim nasceu em 1954, em Paracatu, Oeste de Minas, onde já no início do século 19, com o fim do ouro, havia grande concentração de negros livres da escravidão. Mas sem trabalho e sem terra. De família numerosa, desde os 10 anos vendia frutas em jogos de futebol e fazia outros biscates para ajuntar trocados. O pai abandonou a família e coube a Joaquim, ainda adolescente, o papel de arrimo.
Com ajuda de amigos, aos 16 anos, ele se mudou para Brasília, para concluir o segundo grau e trabalhar. Sua mãe e os irmãos seguiram a trilha logo depois. Para estudar, conseguiu vaga no Colégio Elefante Branco, à época referência em ensino e em agitação político-cultural na Capital.
Para o sustento da família, arranjou emprego na gráfica do Carreio Braziliense, como compositor (digitador) de textos. Lia, pois, boa parte do jornal do dia seguinte. Em 1973, por “presente de Deus”, foi para a respeitada Gráfica do Senado, na mesma função. Transpunha para o Diário do Congresso os discursos de gente como Afonso Arinos, Paulo Brossard e tantos outros - “verdadeiras aulas”, lembra.`
Passou no vestibular para cursar Direito na Universidade de Brasília (UnB). Uma maratona. Trabalhava das 23h às 6 da manhã e ia direto para a universidade. Café e enorme força de vontade o mantinham acordado durante as aulas. Três anos depois, passou no concurso do Itamaraty, para oficial de chancelaria.
Concluiu o curso em 79 e engatou logo o mestrado em Direito e Estado, que concluiu em 82. Menos de dois anos depois, passou no concurso para o Ministério Público Federal, indo trabalhar com Sepúlveda Pertence, na Procuradoria Geral da República. Foi Pertence quem criou condições para que, em 88, Joaquim fosse para a França. Mais três diplomas: especialização, mestrado e doutorado.
Certa vez, um ministro do Supremo de lá perguntou a Joaquim se ele, como negro, teria alguma chance de um dia chegar a ministro do Supremo daqui. Sua resposta foi curta e grossa: “Nenhuma”.
Mas ele tinha razão para errar. Sua tese de doutorado na Sorbonne, era “A Suprema Corte e o Sistema Político Brasileiro”. Sabia, pois, que o STF é a instituição mais estável da história brasileira. E a mais elitista.
De outro lado, porém, sua tese foi escrita e publicada em francês, e bem aceita nos meios jurídicos da França. Isso, por si só, já denotava a estatura do homem de leis que ali se apresentava.
Na sua já volumosa obra teórica, em livros e artigos de revistas especializadas, é clara a preocupação com o fato de que as decisões judiciais afetam vidas humanas. Um juiz que conheça bem a realidade da sua gente será mais justo ao julgar.
O Brasil aplaudiu de pé a peitada que ele deu no então presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, quando este libertou notórios chefes do crime organizado que estavam presos. Foi um debate e tanto, no plenário do Tribunal, com os paramentos de praxe.
“As ruas não têm medo de seus capangas”, bradou Joaquim, referindo-se ao fato de Gilmar ser fazendeiro das antigas no Mato Grosso. E arrematou: “Vossa excelência está destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro”.
Ele foi, também, o primeiro ministro na história do STF a abrir processo contra um parlamentar: o deputado Ronaldo Cunha Lima. E, nos episódios dos chamados mensalões, em que foi o relator, não poupou ninguém. Mesmo os do PT, apesar de confesso eleitor de Lula. Defende a legalização do aborto e o uso das células-tronco em pesquisas.
Ao tratar de questões afirmativas, ele critica a reserva de mercado para negros, por exemplo. Mas suas opiniões contribuíram grandemente para o aperfeiçoamento de mecanismos de geração de renda e cidadania, como o programa Bolsa Família.
Joaquim sofre de um mal de coluna, que o faz padecer de fortes dores. É certo que ele preferiu abdicar da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que na precedência do STF lhe caberia. Poderia criar transtorno em ano eleitoral. Também esse, porém, é um desafio que ele enfrenta com galhardia.
Joaquim é separado da mãe de Felipe, seu único filho, que ficou com ele na separação. Mesmo depois de indicado para ministro, ele sempre manteve os hábitos simples de cidadão comum, dos ambientes da classe média de Brasília.
Uma apresentação de D. Ivone Lara num bar, noutro o aniversário de um amigo.
* Trabalhou nos principais órgãos da imprensa, como Estado de SP, Globo, Folha de S.Paulo e Veja. E na imprensa de resistência, como Opinião e Movimento. No rádio, atuou na BBC de Londres e dirigiu duas emissoras da RBS no DF. No audiovisual, recebeu o prêmio “Vladimir Herzog” de Direitos Humanos. Já publicou mais de uma dezena de livros sobre temas diversos, entre documentais, ficção e poesia.
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