A euforia com a doença é pior do que um câncer
Equipes de TV em frente ao Sírio  Libanês. Ex-presidente deixou o hospital nesta terça (1º) e seguirá com  tratamento contra câncer na laringe
A revelação da grave doença do  ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva trouxe, infelizmente, bem mais  do que uma onda de solidariedade. 
A ira, o rancor e até um  inacreditável entusiasmo ultrapassaram todos os limites do bom senso,  descortinando um ódio de classe que, descobriu-se, ainda continua  exageradamente impregnado. 
O líder da juventude do PSDB  usou o Twitter para equiparar jocosamente a luta de Lula contra o câncer  a suas disputas eleitorais, lembrando sintomaticamente de "duas  derrotas para FHC". 
A jornalista Lúcia Hipólito não  se constrangeu ao atribuir, sem qualquer autoridade, a doença a um  suposto alcoolismo do ex-presidente -que estaria pagando agora o preço  por todas que tomou. 
No Facebook, uma hipócrita  campanha se alastrou pela classe média bem nutrida provocando Lula a se  tratar em hospitais do SUS, que pouquíssimos deles frequentam, aliás. 
Com uma indisfarçável satisfação  e a suprema ironia da desgraça, utilizaram a mais drástica das  oportunidades para menosprezar a importância social do ex-presidente.  Depois, é lógico, de terem comemorado a derrota do financiamento para a  saúde pública. 
A euforia com a doença alheia é  ainda pior do que o próprio câncer.O cálculo político também. Não  demorou nada desde que o diagnóstico se tornou público, para que os  astrólogos da grande imprensa passassem a fazer suas assombrosas  previsões. 
Lula estará afastado das  campanhas municipais, prejudicará os resultados de seu partido em 2012 e  aqueles que dele dependerem vão ficar à míngua. Enfim, uma nova  história política começando a ser escrita. 
São os mesmos futurólogos, no  entanto, que cravaram o mensalão como sua morte política, que  desprezaram as chances de Dilma no começo da campanha e sepultaram o  kirchnerismo na Argentina junto com o ex-presidente Nestor. 
O que há de tão errado nas  análises é que são frutos do desejo, não do conhecimento. Apostas da  esperança, não da lógica. Não se viu campanha para que o empresário José  Alencar, que tratou de seu câncer na vice-presidência, frequentasse os  hospitais públicos.
Fernando Henrique Cardoso criou a  CPMF em seu governo para vitaminar a saúde, mas quem teve coragem de  exigir que sua esposa fosse tratada no SUS, destinatário daqueles  impostos? 
Para muitos, Lula deve honrar  sua origem pobre.Não na hora de estimular transferências de renda ou  impulsionar acesso dos mais humildes às universidades públicas -que  incomodam ou dificultam o caminho da classe média.
Deve honrar sua origem de pobre  vivendo como um pobre, vestindo-se como um pobre, tratando-se como um  pobre.A trajetória de Lula deveria ser um orgulho para o país. Um  daqueles exemplos de como até um capitalismo mal ajambrado e uma  democracia censitária como a nossa permitem, vez por outra, tal  ascensão. 
Mas para quem está no andar de  cima, é um ultraje que ele tenha deslocado o foco do Estado para a  pobreza, valorizado tanto os carentes, estimulado, sobretudo, as regiões  e as populações mais incultas.Afinal, as entradas social e de serviço  não podem jamais se confundir num país de tantas casas-grandes e  senzalas. 
O recrudescimento do discurso  dos colunistas do ódio, a campanha eleitoral que beirou o terrorismo, a  xenofobia rediviva, enfim, colheram seus frutos.E muitos daqueles que  estimularam a política do tudo-ou-nada, demonizando a figura de Lula,  acostumando o público aos ataques pessoais mais repulsivos, de repente  se assustaram com os ecos de seus próprios leitores. 
Lula não é um semideus. Não está  isento de críticas por causa da doença e não traz consigo uma história  de vida sem defeitos ou perversões -como, de resto, nenhum de nós.Mas a  delicada situação em que se encontra não é a melhor oportunidade para  que nos divorciemos de nossa humanidade.
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo.
 
 
 
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