quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Marcelo Semer

A euforia com a doença é pior do que um câncer


Equipes de TV em frente ao Sírio Libanês. Ex-presidente deixou o hospital nesta terça (1º) e seguirá com tratamento contra câncer na laringe

A revelação da grave doença do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva trouxe, infelizmente, bem mais do que uma onda de solidariedade.

A ira, o rancor e até um inacreditável entusiasmo ultrapassaram todos os limites do bom senso, descortinando um ódio de classe que, descobriu-se, ainda continua exageradamente impregnado.

O líder da juventude do PSDB usou o Twitter para equiparar jocosamente a luta de Lula contra o câncer a suas disputas eleitorais, lembrando sintomaticamente de "duas derrotas para FHC".

A jornalista Lúcia Hipólito não se constrangeu ao atribuir, sem qualquer autoridade, a doença a um suposto alcoolismo do ex-presidente -que estaria pagando agora o preço por todas que tomou.

No Facebook, uma hipócrita campanha se alastrou pela classe média bem nutrida provocando Lula a se tratar em hospitais do SUS, que pouquíssimos deles frequentam, aliás.

Com uma indisfarçável satisfação e a suprema ironia da desgraça, utilizaram a mais drástica das oportunidades para menosprezar a importância social do ex-presidente. Depois, é lógico, de terem comemorado a derrota do financiamento para a saúde pública.

A euforia com a doença alheia é ainda pior do que o próprio câncer.O cálculo político também. Não demorou nada desde que o diagnóstico se tornou público, para que os astrólogos da grande imprensa passassem a fazer suas assombrosas previsões.

Lula estará afastado das campanhas municipais, prejudicará os resultados de seu partido em 2012 e aqueles que dele dependerem vão ficar à míngua. Enfim, uma nova história política começando a ser escrita.

São os mesmos futurólogos, no entanto, que cravaram o mensalão como sua morte política, que desprezaram as chances de Dilma no começo da campanha e sepultaram o kirchnerismo na Argentina junto com o ex-presidente Nestor.

O que há de tão errado nas análises é que são frutos do desejo, não do conhecimento. Apostas da esperança, não da lógica. Não se viu campanha para que o empresário José Alencar, que tratou de seu câncer na vice-presidência, frequentasse os hospitais públicos.

Fernando Henrique Cardoso criou a CPMF em seu governo para vitaminar a saúde, mas quem teve coragem de exigir que sua esposa fosse tratada no SUS, destinatário daqueles impostos?

Para muitos, Lula deve honrar sua origem pobre.Não na hora de estimular transferências de renda ou impulsionar acesso dos mais humildes às universidades públicas -que incomodam ou dificultam o caminho da classe média.

Deve honrar sua origem de pobre vivendo como um pobre, vestindo-se como um pobre, tratando-se como um pobre.A trajetória de Lula deveria ser um orgulho para o país. Um daqueles exemplos de como até um capitalismo mal ajambrado e uma democracia censitária como a nossa permitem, vez por outra, tal ascensão.

Mas para quem está no andar de cima, é um ultraje que ele tenha deslocado o foco do Estado para a pobreza, valorizado tanto os carentes, estimulado, sobretudo, as regiões e as populações mais incultas.Afinal, as entradas social e de serviço não podem jamais se confundir num país de tantas casas-grandes e senzalas.

O recrudescimento do discurso dos colunistas do ódio, a campanha eleitoral que beirou o terrorismo, a xenofobia rediviva, enfim, colheram seus frutos.E muitos daqueles que estimularam a política do tudo-ou-nada, demonizando a figura de Lula, acostumando o público aos ataques pessoais mais repulsivos, de repente se assustaram com os ecos de seus próprios leitores.

Lula não é um semideus. Não está isento de críticas por causa da doença e não traz consigo uma história de vida sem defeitos ou perversões -como, de resto, nenhum de nós.Mas a delicada situação em que se encontra não é a melhor oportunidade para que nos divorciemos de nossa humanidade.


Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo.

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