Não pode passar despercebido um texto jornalístico que, por si só, antecipa o fim do julgamento do mensalão. Trata-se de editorial da Folha de São Paulo publicado em sua última edição dominical sob o título “À espera do mensalão”. A certa altura, o texto desmente tudo o que a mídia ligada ao PSDB vem afirmando há anos.
Por Eduardo Guimarães*, e seu blog
Esse veículo de comunicação que, depois da revista Veja, é o mais identificado com a oposição ao PT e ao governo Dilma, a dias do início do julgamento já reconhece que não há provas de que houve compra de parlamentares e uso de dinheiro público por ação da cúpula do partido.
Desprezando alegorias do texto destinadas a conferir grandiosidade a julgamento que, segundo um ministro do STF (Ricardo Lewandowsky), não teria caráter político se não fosse a pressão da mídia, há que analisar, um a um, os trechos que interessam a fim de chegar àquele que mais interessa.
Da Folha:
“(…) De acordo com a PGR [Procuradoria Geral da República], o mensalão foi um esquema ilegal de financiamento político organizado pela cúpula do PT para garantir apoio ao governo comprando votos no Congresso Nacional em 2003 e 2004, no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A acusação sustenta que o mensalão foi alimentado com recursos públicos desviados pelas agências de publicidade do empresário Marcos Valério em meio a supostos empréstimos dos bancos Rural e BMG. O esquema teria distribuído ao menos R$ 43 milhões ao PT e mais quatro partidos aliados (…)”.
O caráter político do julgamento do mensalão é a sua grande fraqueza. E tal caráter foi conferido pelo indiciamento daquele que, à época dos fatos, ocupava o segundo posto mais importante do governo Lula: o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu.
A tese de que Dirceu organizou um esquema de compra de apoio parlamentar para o governo Lula na Câmara dos Deputados usando dinheiro público imputa àquele governo a autoria intelectual do crime. Assim sendo, caso Dirceu não seja condenado a tese em questão simplesmente desmorona.
Continuemos a leitura dos trechos que importam no editorial.
Da Folha:
“(…) A gravidade do ocorrido pode ser medida pelas palavras do próprio Lula. Não as de hoje, calcadas na tese hipócrita de que se tratou de uma farsa golpista. Melhor confiar nas que foram proferidas no calor da hora, quando o então presidente se mostrava bem mais realista.
Em pronunciamento no dia 12 de agosto de 2005, pouco mais de dois meses após o ex-deputado Roberto Jefferson revelar o mensalão em entrevista a Renata Lo Prete, nesta Folha, o ex-presidente afirmou que se sentia ‘traído por práticas inaceitáveis’ (…)”
Dez em cada dez comentários da imprensa aliada ao PSDB sobre o mensalão usam essa frase de Lula proferida em entrevista que concedeu ao programa global “Fantástico” em viagem que fez à França à época do estouro do escândalo.
A mídia oposicionista e seus colunistas tentam transformar essa frase em admissão de que o que aconteceu foi compra de votos pelo governo federal com uso de dinheiro público, quando o que Lula disse, à época, foi que houve, sim, práticas ilegais, mas foram de uso de “caixa
Agora, por fim, chegamos ao ponto principal do editorial da Folha. Leia com atenção porque, após tanta repetição de chavões pela mídia de 2005 para cá, é a primeira vez que ela assume fatos que vêm sendo informados por blogs como este desde aquela época.
Da Folha:
“(…) Evidências colhidas em sete anos de investigações, entretanto, não seriam suficientes, aos olhos de alguns especialistas, para caracterizar a ilicitude em duas questões centrais: a finalidade do esquema e a natureza dos recursos.
Não há nos autos elementos que sustentem de forma inequívoca a noção de que o objetivo do mensalão era comprar respaldo no Congresso. Sem a demonstração de que os pagamentos foram oferecidos em troca de apoio parlamentar, perdem alguma força as acusações de corrupção.
Quanto ao dinheiro, o STF precisará se pronunciar sobre sua origem, se pública ou privada. Comprovar o desvio de recursos públicos é pré-requisito para algumas acusações de lavagem de dinheiro, por exemplo (…)”
Ora, acabou o julgamento. Ao menos no que tange à tese de compra de apoio parlamentar e uso de dinheiro público, deixando, “apenas”, acusação de formação de caixa 2 àqueles que sacaram dinheiro “não contabilizado” na boca do caixa, desvio que certamente ocorreu e que tem que ser punido.
Chega a ser constrangedor, portanto, ter que escrever o que vai a seguir, mas é importantíssimo que as pessoas entendam a filosofia jurídica que embasa o Estado Democrático de Direito.
In Dubio Pro Reo é uma expressão latina que significa, literalmente, que, na dúvida, a Justiça deve sempre decidir a favor do réu. Essa expressão traduz o princípio jurídico da presunção da inocência. É um princípio consagrado em todas as democracias dignas do nome.
Em caso de dúvida (por exemplo, insuficiência de provas) não pode haver condenação do réu. É um dos pilares do Direito penal e está intimamente ligado ao princípio da legalidade.
O princípio In Dubio Pro Reo se aplica “Sempre que se caracterizar uma situação de prova dúbia, pois a dúvida em relação a existência ou não de determinado fato deve ser resolvida em favor do imputado.” (apud SOUZA NETTO, 2003, p. 155).
A dúvida da autoria de um delito, assim, não está nas provas produzidas, mas na mente de quem as julga. A dúvida não é a causa e motivo de absolvição, mas falta de elementos de convicção que demonstrem ligação do acusado com o fato delituoso.
É nesse ponto que o editorial termina de enterrar a condenação ao menos de José Dirceu e, por conseguinte, a teoria de um esquema institucionalizado de compra de votos de parlamentares com uso de dinheiro público.
Da Folha:
“(…) Parece muito provável que o mensalão tenha envolvido desvio de verbas públicas, boa parte das quais foi distribuída por próceres do PT entre correligionários e aliados. E mesmo que fosse apenas para saldar dívidas de campanha, que outro objetivo haveria nos pagamentos se não o de aliciar apoio (votos) no Congresso? (…)”
O vício no pensamento do editorialista é flagrante e se deixa trair pelo uso de um verbo. Parecer “provável”, segundo o melhor Direito, é insuficiente para destruir a vida de alguém, ou seja, para condenar um réu à prisão e à execração pública.
Se apenas parece “provável” que houve desvio de verbas públicas, por que o editorialista escreve que parte delas “foi distribuída por próceres do PT”? Não seria mais correto dizer que parte das verbas “teria sido” distribuída? Não há nem concordância do texto com ele mesmo, pois.
O assunto mensalão ocupou cerca de 70% dos cadernos de política dos grandes jornais do domingo que antecede o início do julgamento. Tudo o que esses veículos publicaram não passa de opinião e especulação, na base do “parece”, “é provável” etc. Todavia, o editorial da Folha se diferencia porque, pela primeira vez em cerca de sete anos, um dos braços da imprensa ligada ao PSDB reconhece ausência de provas do mensalão.
Alguns dirão que foi uma escorregada, mas não foi. Após tantos anos garantindo que haveria certeza de que houve compra de votos de parlamentares e uso de dinheiro público, a mídia tucana parece querer deixar uma porta aberta por onde escapar caso o julgamento do STF seja técnico e não político, como ela quer.
Aliás, como curiosidade, vale citar matéria da mesma Folha também deste domingo que repete afirmação que este blog fez no último dia 10 de julho no post Se pressionar STF for “crime”, PIG pode “vestir” as algemas. Nesse post, o blog afirmou que o julgamento do mensalão assemelha-se ao do ex-presidente Fernando Collor.
Como se sabe, Collor foi absolvido por falta de provas. Afinal de contas, In Dubio Pro Reo.
* Eduardo Guimarães é jornalista, blogueiro sujo e colaborador do Portal Vermelho
Título original: Jornal ligado ao PSDB reconhece que não há provas do mensalão
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