quarta-feira, 24 de agosto de 2005

O PT e a revolução passiva

O que Antônio Gramsci tem a ver a com a crise política brasileira.

Por Guilherme Preger -

Até o ponto em que chegamos já é possível afinal esboçar um sentido último da crise atual. Embora fatos novos surjam a cada dia e revelações sejam descortinadas freneticamente, numa mistura de histerismo e oportunismo, lentamente camadas de significação vão se estratificando e se estabilizando no horizonte. Tenho defendido que a grande nuvem que dificulta a compreensão mais profunda dos recentes eventos é o moralismo indignado da opinião pública de classe média que assim revela sua ambigüidade estrutural com relação ao PT no poder. Esta ambigüidade reflete a persistente má consciência em relação à sua posição econômica. Num país de imensa desigualdade social a classe média se aparta do chamado povão. Não sabe se se declara como classe trabalhadora ou como patroa. Por isso, não toma partido nesta crise e só consegue enxergar nos fatos a palavra “corrupção”. Mesmo que até agora o que tenha sido provado seja a centenária prática da sonegação fiscal de recursos privados. Sonegação que, em seus pequenos negócios, a classe média não deixa de praticar. Por exemplo, quando não assina carteira de trabalho de diaristas e domésticas que lhes prestam serviço (sonegação além de fiscal, previdenciária). Não vê que está em jogo uma questão mais grave do que a ausência de um comportamento “republicano” dos políticos, termo da moda. Estão em jogo interesses concretos dos trabalhadores brasileiros, cujos representantes, mal ou bem, chegaram ao poder pela primeira vez e já estão sendo chantageados pelos poderes hegemônicos. A postura moralista dá vez a uma leitura despolitizada dos eventos que despreza os verdadeiros interesses, objetos de acirrada luta política, ao mesmo tempo em que abre uma brecha para que posições de “golpismo branco” frutifiquem.

Pois bem, dito isto, já é possível afirmar que o objetivo último desta crise é provar que um governo de trabalhadores no Brasil é simplesmente inviável. Segundo a mentalidade ideológica que vai sendo construída, trabalhadores são seres vorazes, pouco confiáveis, quando chegam ao poder gostam e querem ficar indefinidamente. Para eles vale o velho adágio de que não se pode dar a mão que querem logo o braço inteiro. Chegaram à presidência e já querem ocupar todo o isento e indefeso aparelho estatal, ora vejam que petulância!
O PT no poder é uma contradição insolúvel no interior do Estado. Da forma como o Estado brasileiro foi historicamente construído, como um gigantesco aparelho excludente a serviço de oligarquias e plutocracias, a emergência de um partido de trabalhadores no Estado só pode trazer problemas. O PT ao chegar ao poder se instala na nossa República patrimonialista como um corpo estranho, um antígeno, que leva o aparelho estatal a recusá-lo e a tentar expulsá-lo num processo que poderíamos mesmo chamar de “alérgico”.
“PT no poder” é, como diria Roberto Schwarz, uma “idéia fora de lugar”, ou um grande mal entendido, como Sérgio Buarque se referia à possibilidade de democracia no Brasil em outra época que também trouxe grandes transformações (a década de 30 e a emergência do Estado Novo). Antes de esta crise estourar, muitos já haviam percebido a grande dificuldade de se entender o que significava historicamente o governo de Lula. Havia algo como um limite “hermenêutico”, uma ausência de instrumentos conceituais para se definir a nova fase que a incipiente democracia brasileira entrava em 2002.
Paradoxalmente, só através das denúncias de Roberto Jefferson é que uma luz retrospectiva pode ser lançada sobre o rumo do novo governo até aquele evento bombástico. Até então o tema mais presente discutido no âmbito da esquerda política era a “decepção com o PT”. O Partido dos Trabalhadores não teria sido capaz de levar adiante as velhas bandeiras socialistas defendidas historicamente e, no lugar, aderiu à ortodoxia econômica das finanças internacionais. Esta crítica simplista não levava em conta o fato de que pouco antes das eleições o PT divulgou uma carta com o compromisso feito ao povo e, em particular, aos empresários, de, caso eleito, não provocar nem a ruptura com a política econômica vigente, nem provocar rupturas políticas. Isto significa que o PT aceitou disputar um governo em que seu horizonte de ação, caso eleito, seria muito limitado. Mas está implícito na crítica da esquerda “decepcionada” que o PT ao ser eleito deveria rasgar seus compromissos publicamente assumidos, numa típica submissão dos fins aos meios, hipótese que ela atualmente, horrorizada, recusa.
Tampouco esta esquerda levou em conta, na ocasião, as evidentes conquistas dos dois primeiros anos de governo como o retorno do crescimento econômico, o aumento do emprego formal, o aumento real do salário mínimo (que passou pela primeira vez, em décadas, dos 100 dólares), o crescimento substancial das exportações, a diminuição dos juros (que passaram de 26% para 19%) e duas grandes conquistas políticas: a desmobilização da proposta americana do ALCA (que foi adiada sine die) e o abandono do projeto de privatizações.
Este último item não pode ser realmente subestimado. Na perspectiva da classe trabalhadora o projeto tucano das privatizações foi a maior entre todas as ameaças dos anos FHC. Em primeiro lugar, pois os tucanos se outorgaram o direito ilegítimo de alienar um patrimônio do povo a um preço vil. Depois, porque várias privatizações foram um retumbante fracasso, sobretudo as privatizações do setor elétrico e das ferrovias, cujo ônus ficou inteiramente com o bolso do povo. Finalmente, porque a única bem sucedida de menção, a privatização das telefônicas, foi um sucesso de consumidor, aumentando as ofertas, mas para os trabalhadores, representou demissões em massa e a degradação acentuada das condições de trabalho. E mesmo o sucesso na ponta de consumo precisa ser relativizado, pois a oferta de linhas fixas se estagnou em cerca de 60% da população ativa e não cresce mais, não porque não haja demanda ou necessidade, mas simplesmente porque as tarifas estão além do que a população das classes D e E pode pagar.
E deve-se ter a honestidade de acrescentar que as privatizações ocorreram à época num ambiente com fortes indícios de corrupção, com provas muito eloqüentes (gravações que incluíam falas do presidente da República garantindo seu aval à formação de um certo consórcio privado de fundos de pensão), envolvendo valores monetários superiores aos discutidos nos últimos escândalos, mas que o congresso, o judiciário e a imprensa julgaram oportuno não investigar.
Assim, constrangido por severas limitações impostas, o PT chegou ao poder federal na quarta tentativa. Foi necessário abandonar suas bandeiras históricas e missionárias, para que o PT tivesse o aval não apenas dos poderes econômicos hegemônicos, bem como da parcela de classe média sempre atemorizada com o “radicalismo petista”. Um PT esmaecido e emasculado, cor de rosa, “paz e amor”, que deixou do lado de fora da sala presidencial seu antigo voluntarismo de ruptura e conflito, que forjou o Partido em vinte anos de oposição, para, no lugar, construir um “pacto nacional” que agradasse a gregos e a troianos. Esta situação de limites estreitos funcionou como uma armadilha. Assim, o governo Lula, premido pelas duras circunstâncias, seria apenas um breve interregno, um teste autorizado pelos poderes hegemônicos, de resultado esperado, para demonstrar que, apesar de ter sido dada uma preciosa chance, os trabalhadores não foram capazes de a aproveitar, por sua notável incompetência e ganância.
Abandonar velhas lutas e acomodar-se ao poder estabelecido foi uma decisão trágica, mas é preciso admitir que este não foi um problema apenas do partido, mas do próprio Estado brasileiro. A constrangedora situação de fragilidade do partido na autonomia de suas decisões foi a condição para que o processo de transição ocorresse sem grandes perturbações. Neste contexto, foi necessário engolir, na presidência do Banco Central, um ex-tucano, ex-presidente do Banco de Boston. E um médico no ministério da Fazenda com parcos conhecimentos de economia e sem capacidade de decidir por si próprio. Tendo em vista o tal “pacto nacional”, formou-se o ministério que era expressão gritante das contradições existentes da nova República: grandes empresários misturados a vários remanescentes do meio sindical, representantes de movimentos populares e ex-guerrilheiros da luta armada. E o que se seguiu foi uma surpreendente estabilidade que, do ponto de vista econômico, persiste até hoje, em contraste com as várias turbulências da economia vividas no período tucano. Mas esta estabilidade, foi aos poucos ganhando um certo ar de imobilismo, com exceção das conquistas mencionadas anteriormente, sendo mais visível na área social que parecia não andar. Foram realizadas reformas, previdenciária e fiscal, pífias. Observou-se que os valores orçados para as obras não conseguiam serem gastos pelos ministérios. O Fome Zero desandou e logo começaram as críticas que deram início ao tema, típico da visão gerencial da política, sobre a “incompetência do jeito petista de governar”. Na verdade, o aparente imobilismo do governo denunciava uma contradição de fundo que começava a se manifestar. Impossibilitadas as mudanças radicais realmente concretas e necessárias ao desenvolvimento do país, começou uma paulatina e silenciosa ocupação de cargos públicos por representantes de sindicatos e de movimentos populares. Novos nomes foram surgindo na administração pública, ocupando vagas que historicamente eram repartidas entre os Donos de Poder, entre as elites que dominavam a política, e que eram vedadas a representantes populares que não tivessem substancial QI (quem indica). Essa massa nova de integrantes efetivamente levou a uma paralisação dos setores públicos, pois este era um acontecimento fora do “script”, a novidade silenciosa de um governo sem novidades.
O ingresso maciço dos novos nomes na administração pública também começou a provocar crescentes conflitos nas políticas palacianas de Brasília. É provável que a eleição de Severino tenha sido um sinal de descontentamento na base fisiológica de governo com essa realidade. Esses partidos nanicos sobrevivem nas franjas do Estado, imiscuídos ao seu aparelho, dependendo historicamente da distribuição de cargos para sobreviver. Foi o próprio Severino que, ao eleito, defendeu de forma constrangedora a prática histórica do “nepotismo”. Criou-se então, nas polêmicas da crise, a oposição entre “nepotismo” severino versus “nepetismo” sindical, que representava sinteticamente a luta política subterrânea em vigor.
Esta gradual tomada de Estado por representantes dos trabalhadores organizados não podia passar despercebida aos olhos argutos e treinados do deputado Roberto Jefferson. Em particular porque seus próprios interesses estavam em jogo. Quanto mais a crise evolui, mais fica claro que sua atitude quase suicida correspondeu a uma percepção aguda que sua trajetória de mais de 5 mandatos, desde a ditadura, chegara aos seus derradeiros dias. Como último teste, Roberto Jefferson realizou um “experimento Furnas”, uma tentativa deliberada de cutucar a onça com vara curta e forçar uma candidatura de um afilhado na grande e disputada estatal. Não há dúvidas que Jefferson provocou o conflito para verificar até onde ia o que ele supunha ser um projeto de Estado petista. E as drásticas conseqüências do evento, só pareciam lhe dar razão. Mas foi uma jogada cujo tiro saiu pela culatra, causando uma reversão nos fatos e pegando no contrapé o esperto deputado. Foi muito fácil para o comando de governo, pressentindo a tática oportunista de Jefferson, utilizar as forças policiais de Estado para pegar em flagrante um de seus protegidos embolsando dinheiro em seu nome.
No inesquecível embate entre Jefferson e José Dirceu na Comissão de Ética, evidenciou-se claramente o confronto entre os “instintos primitivos” agônicos do fisiologismo histórico e o tom impassível do que seria o novo burocratismo petista. Pode-se criticar o caráter dissimulado, e mesmo mentiroso, do depoimento de Dirceu, mas nessa ocasião ele defendia fielmente um certo projeto de governo enquanto Jefferson apenas defendia seus interesses particulares.
E que projeto seria este? Depois que a denúncia do mensalão enquanto mesada para comprar votos de deputados começou a se mostrar inconsistente (mensalão para deputados do PT votarem a favor do governo?), cresceu, entre as hostes oposicionistas, a versão da ocupação petista de Estado. A mais famosa dessas versões é a tese do senador Jefferson Peres de que o PT estava produzindo uma “mexicanização” do Estado, criando um “partido revolucionário institucional” que levaria a uma democracia de partido único. Para José Serra, por seu lado, o que ocorria é o surgimento de um Estado “bolchevique-sindicalista”.
O que estas críticas revelam intimamente é o completo menosprezo pela autonomia decisória do povo. E daí se o PT pretendia ficar indefinidamente no poder? Quem, em última análise, irá definir este horizonte é o próprio povo através do instrumento eleitoral. É preciso recordar que falecido Sérgio Motta, o José Dirceu tucano, dizia que o projeto pessedebista era de vinte anos, e o povo decidiu defenestrá-lo em menos da metade do tempo. Já Lula, em algumas entrevistas, foi bem mais modesto, falando em algo como um projeto de dez anos.
Ao contrário do que tem se dito, Lula não foi eleito num clima messiânico de salvacionismo, mas de forma pragmática, pois os eleitores reconheceram que José Serra representava um projeto esgotado de poder, enquanto o PT poderia trazer algo de novo para nossa vida política. Em termos eleitorais, a população vota mais racionalmente do que passionalmente, pensando em seu próprio bolso mais do que em horizontes utópicos.
O que os críticos do petismo sugerem é uma visão tutelada dos eleitores que é incompatível com o atual estágio de uma “sociedade da informação”. Mesmo se o PT quisesse, não seria capaz de manter uma sociedade “iludida”, por mais duda mendonças que contrate para sua publicidade. Não há mais currais eleitorais, como foi a lei histórica de reprodução de nossa República. Durante o tucanato, por outro lado, o governo não se cansou de assumir uma atitude “esclarecida”, menosprezando todas as críticas de oposição ao seu projeto neoliberal como representantes de uma mentalidade socialista anacrônica.
Ao mesmo tempo, a tentação dos surtos populistas encontra no PT seu mais concreto obstáculo. Exatamente por ter representatividade popular e congregar uma miríade de movimentos sociais, o PT é o único partido que não precisa recorrer ao populismo para firmar suas posições. Conseqüentemente, se esta crise resultar no esfacelamento do PT, estará aberta a possibilidade para a emergência dos movimentos populistas mais obscurantistas para ocupar o iminente vácuo político, inclusive com o recrudescer do evangelismo conservador, o mais organizado de nossa sociedade.
Por outro lado, a chamada “ocupação” petista do Estado precisa ser entendida de maneira menos ingênua e mais politizada. Ela não é uma simples “tomada” de poder, baseada numa subterrânea estratégia maquiavélica, e sim fruto de uma luta política cujo resultado é ainda indefinido e indeterminado.
Antônio Gramsci firmou o conceito de “revolução passiva” para explicar a passagem de uma sociedade aristocrática, de laços feudais, para uma sociedade de hegemonia burguesa. Esta passagem ocorreu na Itália de maneira gradual, ao contrário do ocorrido na história francesa, onde se deu através de uma revolução “abrupta”, violenta. Na Itália, uma série de acordos tácitos foram feitos entre burguesia ascendente e aristocracia decadente para preservar antigos privilégios da nobreza, criando uma situação de reformismo que garantiu a médio e longo prazo a hegemonia burguesa. Gramsci fala de um “transformismo molecular” que invisivelmente foi dando à burguesia a dominância político-econômica, garantindo à antiga aristocracia funções importantes na hierarquia governamental. O filme “O Leopardo” de Visconti ilustra maravilhosamente este movimento histórico de uma “revolução sem revolução”, em que se torna necessário “mudar para que nada mude”.
Antes que os paranóicos críticos de direita vejam nesta leitura apenas uma comprovação de sua tese conspiratória da implantação do comunismo no Brasil via uma “revolução cultural” petista, é preciso que se diga que Gramsci insistia que a “revolução passiva” não era um programa político e sim um instrumento de análise histórica. A revolução passiva ocorria quando a situação das forças sociais “subalternas” em jogo impedia uma transição abrupta, à maneira revolucionária. Para o grande pensador marxista, a revolução passiva em seu tempo era contra os interesses do proletariado e havia sido a forma que a burguesia encontrou para se manter com as rédeas do poder.
Não seria a “revolução passiva” aquilo que sobrou para um partido dos trabalhadores sem autonomia e imprensado entre os condicionamentos que encontrou ao assumir o poder? Constrangido pelas reais limitações impostas, ao PT só restou introduzir representantes de sindicatos e movimentos sociais no Estado para torná-lo mais permeável às transformações. Sem realizar as rupturas temidas pelas classes dominantes, pelo hegemônico setor financeiro, os trabalhadores no interior do Estado poderiam dar uma inflexão aos históricos rumos tomados pelo grande aparelho, protetor corporativo de oligarquias.
Esta inserção de trabalhadores no corpo do poder é vista como algo absurdo, intolerável, um movimento antidemocrático, uma escandalosa traição pela opinião pública midiática. É uma reação justificável a uma mudança radical, cujo final ainda é incerto. Porém, é necessário abandonar a ilusão que é possível, neste caso, uma ocupação neutra, isenta, técnica, uma presença de profissionais desprovidos de conotações ideológicas.
Pelo ponto de vista da classe trabalhadora, a presença de trabalhadores no aparelho de Estado não pode ser descartada “a priori”. É preciso, como se diz, “não jogar a criança com a água do banho”. Nesta crise é importante separar o trigo do joio, permanecer atento para quais são os verdadeiros interesses populares e quais aqueles que desejam devolver o poder aos tecnocratas e aos agentes das bancas financeiras. O fundamental é apoiar para que sejam fortalecidos os órgãos civis de fiscalização do poder que, em última análise, julgarão se os interesses dos trabalhadores estão sendo de fato respeitados por esses novos participantes do poder. O risco agora é voltar ao passado neoliberal privatista ou permitir que oportunistas de plantão surjam vendendo populismos de ocasião. Estes são os perigosos estreitos que precisarão ser ultrapassados pela classe trabalhadora, como os mitológicos estreitos de Cila e Caribdes, qual um Ulisses navegando amarrado ao mastro da razão para não sucumbir aos melífluos cantos de sereias do moralismo confortável e narcisista.
Guilherme Preger é engenheiro e mestre em Literatura Brasileira pela UERJ, autor do livro de poesia “Capoeiragem” (7 Letras/2003).

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