As emissoras, naturalmente, estão fazendo drama.
Vitimizam-se, dizem que assim não pode ser, que os prejuízos são insuportáveis, para elas e para o público. Como foram frustradas na tentativa de derrubar na íntegra ou modificar a portaria, tentam agora uma jogada mais radical: mudar os próprios fusos horários do país. Ironicamente inspiradas, talvez, no Hugo Chávez que tanto demonizam - e que mudou os fusos da Venezuela para que as crianças não tivessem de acordar cedo para ir à escola -, elas querem extinguir os quatro fusos brasileiros, fazendo valer a hora de Brasília em todo o país.
É uma idéia abstrusa, quase inacreditável, mas não para uns tantos parlamentares, que fazem do Congresso Nacional um ativo escritório de representação de interesses da radiodifusão. A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados já aprovou, há alguns dias, um projeto de lei que altera os fusos horários de três estados.
"O texto extingue o fuso horário do Acre e da parte mais ocidental do Amazonas", informa o Observatório do Direito à Comunicação. "Nestas regiões, os relógios passam a funcionar em sincronia com os demais estados da região Norte e Centro-Oeste, ou seja, uma hora a menos que a hora oficial de Brasília. No Pará, que antes era dividido por dois fusos diferentes, passa a valer apenas o horário de Brasília."
Não é o que as emissoras querem, mas já quebra bem o galho. A Globo decidiu classificar Duas Caras como adequada para as 20 horas, embora a novela entre no ar, geralmente, às 20h50 e saia depois das 22 horas, exceto em dias de futebol. Mesmo gerada do Rio de Janeiro para todo o país - ao mesmo tempo, como ocorre agora -, ela será transmitida sem qualquer irregularidade em todas as regiões se o projeto de apenas dois fusos horários converter-se em lei.
Ou seja: em vez de adequarem-se tecnicamente à Portaria nº 1.220, um instrumento justo e sério que tenta proteger os direitos da criança, sejam elas paulistas, fluminenses ou acreanas, as emissoras de TV fazem mais uma gambiarra regulatória, para se darem bem ao menor custo possível.
Enquanto isso, as crianças têm uma iniciação sexual cada vez mais precoce no Brasil, sem informação adequada. Explodem a gravidez de adolescentes, os abortos, as doenças venéreas, o contágio de Aids. O crime viceja, a partir da maciça desestruturação familiar.
Mas, não, nem pensar, nada a ver. A televisão não tem nenhuma responsabilidade nesse assunto, não é mesmo? Aquilo da Flávia Alessandra nem foi dança erótica, foi assim um... exercício de ginástica, certo? E ela não estava nua, não senhor! Tinha pano mais que suficiente, para tapar a consciência.
Erotismo na TV: o strip-tease que esconde mais do que mostra
"A televisão não tem nenhuma responsabilidade nesse assunto, não é mesmo? Aquilo da Flávia Alessandra nem foi dança erótica, foi assim um... exercício de ginástica, certo? E ela não estava nua, não senhor! Tinha pano mais que suficiente, para tapar a consciência".
Por Gabriel Priolli
Flávia Alessandra entra em cena, gloriosa. No esplendor de sua beleza, chega arrasando, disposta a chamar toda a atenção do ambiente. Em poucos segundos, todos os olhos estão grudados nela. As mulheres torcem o nariz de inveja e os marmanjos babam, sonhando com o que não podem ter. Um deles, o mais exaltado, passa mal e é carregado para fora, com suspeita de infarto.
Flávia Alessandra, sem dúvida alguma, chega "causando". Mas ela está numa festa de Caras, num evento de Quem, numa boca-livre de Contigo? Negativo. Ela está num capítulo da novela das oito da Globo, Duas Caras. Linda, sedutora, poderosa... e nua.
Nua??? Bem, não exatamente. Está vestida com uns fios e uns panos que, somados, devem totalizar uns 10 cm2 de cobertura para o corpo. O resto, tudo aquilo que Deus lhe deu sem um pingo de avareza, está à vista, ao desfrute da concupiscência. Então, Flávia Alessandra está fazendo uma cena de Carnaval? É destaque de escola de samba, preparando-se para sair na avenida?
Nada disso. Ela é a discreta e recatada enfermeira Alzira, que, casada com um desempregado crônico, faz bicos noturnos como dançarina erótica numa boate de strip-tease, para aumentar a renda familiar. Acaba de entrar em cena escorregando por uma barra cilíndrica e se esfrega nela com grande desinibição, deixando os telespectadores estarrecidos e a moçada com água na boca.
O pequeno problema é que são 21 horas em Brasília, ou seja, 19 horas em Manaus e 18 horas em Rio Branco, pelo horário de verão. E entre a moçada com água na boca estão milhares de crianças, cujos pais e mães as imaginam a salvo de apelos sexuais tão intensos, quando assistem à familiar novela das oito.
Afinal, é a própria Globo que garante respeitar os bons costumes e a sensibilidade de sua audiência. E foi ela mesmo que autoclassificou a novela como adequada para a faixa das 20 horas, imprópria apenas para menores de 12 anos de idade. Mas lá está Flávia Alessandra quase pelada, rebolando e contorcendo-se na pole dance, um vulcão erótico diante dos olhos das crianças acreanas, às seis da tarde.
Ajustes regionais
O Ministério da Justiça já instaurou um processo de reclassificação etária da novela, com base no que lhe faculta a recente Portaria nº 1.220, que instituiu a classificação indicativa da programação de TV. Por esse instrumento, como se sabe, as emissoras indicam livremente os horários que julgam adequados à exibição de seus programas.
Mas, se o ministério entender que há descumprimento das normas, pode reclassificar. Duas Caras corre o risco de ser liberada apenas para as 22 horas, ou para maiores de 16 anos, tão inadequado teria sido o bailado de Flávia Alessandra.
O episódio revela, por um lado, que as vicissitudes da rede-líder, perdendo audiência para a concorrência e para a internet, levam-na ao caminho de sempre na televisão: o da apelação. Duas Caras vinha dando, em média, 40 pontos de audiência na Grande São Paulo e, na noite em que Flávia Alessandra se despiu, subiu para 45 pontos.
Não há programador de TV que seja insensível a um resultado desses. Logo, não é por acaso que as cenas da novela estejam ficando, a cada dia, mais apimentadas. Lubricidade é boa publicidade.
Não haveria nada de errado com isso, ressalvada a questão do gosto, se tudo estivesse nos conformes legais. Mas aí entra o outro lado do problema. As emissoras de TV, que lutaram o quanto puderam contra a Classificação Indicativa e que só a estão aplicando com muita relutância, simplesmente não aceitam o parágrafo único do Artigo 19, da Portaria nº 1.220:
"A vinculação entre categorias de classificação e faixas horárias de exibição implica a observância dos diferentes fusos horários vigentes no país".
Essa exigência terá plena validade a partir de 1º de janeiro próximo. Como são quatro os fusos brasileiros e toda a programação nacional de TV é transmitida a partir de um deles, o do Sudeste, adequar-se à portaria implica incômodos operacionais e custos para as emissoras afiliadas às grandes redes.
A rigor, a exigência não impõe nenhum desafio técnico. A emissora geradora pode fazer emissões distintas para cada fuso horário ou, nas diversas regiões, as emissoras afiliadas podem armazenar a programação gerada do Rio de Janeiro e São Paulo, no horário normal, exibindo-a uma, duas ou três horas depois. É apenas uma questão de investimento e organização.
Para o telejornalismo, entretanto, há uma implicação maior. Os jornais não serão mais assistidos ao vivo em boa parte do país, se as grades nacionais de programação não sofrerem ajustes regionais - algo que horripila as redes. As regiões Norte e Centro-Oeste verão sempre com atraso os noticiários. Mas não será nada de especialmente incômodo para os telespectadores, considerando que os habitantes dessas regiões já lêem os diários impressos no Sudeste com atraso, às vezes de mais de um dia.
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